Clauder Arcanjo – Catrevagem

— Nada, quero nada, não.

— Tome pelo menos um copo d’água; e se sente, homem. Esfrie o corpo e desembuche essa sua mágoa, amigo.

Lá fora o sol estava a toda; um calor que não convidava para a mínima conversa.

— Não, quero desaparecer. Melhor seria sumir. Sumir sem deixar rastro nem destino.

— Tá bom, tá bom! Porém, antes que você suma, venha me dizer o que foi que houve. Somos amigos, ou não somos?

Coçou o nariz, fez bico de zangado, encheu e esvaziou os pulmões, e resolveu falar:

— Ela nem era tão bonita, eu sei. Até meus amigos se zangaram comigo, quando, por ela, resolvi abrir mão da minha solteirice.

— Coração tem suas próprias leis.

— Mas eu simpatizei com aqueles olhos abelhudos. Debaixo daquelas sobrancelhas grossas e por cima daqueles lábios finos. Quando dei por mim… estava acostumado com ela. Passados alguns meses, não sabia mais como viver sem ela. Você me entende, não entende?

— Sim, como não.

— Nem ligava mais para os comentários da minha parentada. Sim, a família se juntou aos achincalhes da minha turma. “Que eu não era louco de me juntar com uma dona como aquela; que eu nem parecia ser um homem maduro de cair na lábia de mulher como ela…” Uma conversa sem fim, que não me deixava quieto um minuto sequer. Sabe o que resolvi fazer, sabe?

— Não.

— Imagina?

— Nem sequer posso imaginar, amigo.

— Pois resolvi abandonar amigos e família. Que vão tudo para o quinto dos infernos, ora bolas!

— Corajoso você, amigão. E haja coragem! Você que sempre foi tão chegado aos seus mais próximos. Não o conhecia tão decidido.

O calor sufocava-o, e ele abanava-se em busca de um refrigério, por menor que fosse. Mas, dali, não arredaria pé, de tão curioso.

— Melhor, resolvi me mudar de bairro. Ela me bastava. O mundo inteiro se resumia, para mim, a ela.

— O amor tem suas forças próprias, já diziam os antigos gregos.

— Amor que nada!… Hoje eu sei, era o veneno da paixão que havia sido posto na minha boca; e o otário aqui mamando na onça pensando que era leite de princesa.

O calor passou como obra de magia; a curiosidade lhe resfriara o quengo e lhe arregalara os olhos.

— Como! Não me diga que…

— Digo, digo! Você quer ou não quer saber?

— Apenas pelo bem da nossa amizade, claro. O que um amigo não faz por outro?!… Não se deve negar o ombro às confidências de um companheiro.

— Posso, então, continuar? Não estarei eu a importuná-lo? Você não me falou que teria que ir mais cedo para casa hoje, que seria aniversário de sua Rosinha, e coisa e tal?

— E seria eu louco e desumano de deixar meu amigo aqui sozinho com tanta coisa para desembuchar?… Digo, para se aliviar. Não, claro que não! A amizade cobra sacrifícios, já declarara Sêneca.

— Bela frase esta de Sêneca. De qual livro você a retirou?

— Isto não importa. O que são os pensadores frente aos infortúnios que se abatem diante dos nossos olhos?! Sinto que a tragédia lhe pesa nos ombros; vamos, alivie-se. O melhor remédio é se abrir, deixemos Sêneca em paz com as suas virtudes de ocasião.

— Pois bem. Tudo foi se escorregando, se desmanchando. Um desleixo dela aqui, um esquecimento ali, um café esquecido e frio acolá. Uma roupa suja minha abandonada no quarto, um almoço requentado no domingo… Enfim, a coisa foi se deteriorando; e eu, feito cego, não reparava em nada. Até que… Até que…

— Sim, até que…

— Não sei se devia lhe dizer.

— Homem, deixe de frescura e desembuche logo!

Arregalou os olhos, esticou os beiços, hauriu o ar quente da tarde e começou a chorar. Chorar tão copiosamente que as palavras não mais lhe saíam.

— Deixe de choro, seja homem! Desembuche, catrevagem!

Com isso, mais o pranto se lhe acochou. Um pranto sentido, dorido e chorado como nas maiores tragédias de Shakespeare. Entre um soluço e outro, o coitado suspirou:

— Você agora falou que nem ela. E como eu estou com saudade dela! — disse e se abraçou com o amigo.

Este deu um passo para trás e, ao perceber que daquele mato de choro não sairia mais o cachorro da confidência, coçou o nariz, fez bico de zangado, encheu e esvaziou os pulmões, e resolveu seguir. Não sem antes arrematar:

— Perdi a minha tarde. Volto para casa de língua seca, e vazia.

 

Clauder Arcanjo