Pílulas para o Silêncio (Parte CCLXVII)
Clauder Arcanjo*
(“Sonho de uma meretriz”, de Cícero Dias)
Entre risos, silêncios e conchambranças
Se eu não tomar cuidado, a Burguesia e os poderosos do mundo me lascam mais ainda! Até hoje, à custa de quengadas, conchambranças e picardias, tenho conseguido forçar a Burguesia a me pagar, inclusive para falar mal dela. Assim, enquanto o Reino-de-Deus não chega, com sua Justiça, vou conseguindo furar, abrir caminho e sobreviver, ora me fingindo de leso, ora de doido, ora de Palhaço.
(Ariano Suassuna, em As Conchambranças de Quaderna)
Explicação e dedicatória
Este texto nasceu em uma manhã ensolarada. Nela, o meu amigo Valter Silva Júnior, que venera (e se extasia com) o belo, me levou a refletir, com o seu “riso a cavalo”, acerca das coisas verdadeiras, simples, limpas e puras. Ele lera, recentemente, Ariano, instigado pelo jovem cavalheiro Pedro Siqueira. Quando menos percebi, estava em “galope de sonho”, a unir meus personagens com os de Ariano Suassuna. E as minhas dores se escafederam, e a vertente cômica tomou conta do dia. Por obra e graça do Senhor do Bonfim e de Nossa Senhora da Penha, Valter e Pedro devolveram-me “a alegria e a coragem para enfrentar a dura mas fascinante e bela tarefa de viver.”
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Primeiro Ato
Mal pus os pés no reino de Licânia, reencontro com o Companheiro Acácio. Coloca a mão no meu ombro, faz um chamego no gato Nabuco, fiel companheiro. Em seguida, Acácio conduz-nos à beira do rio e nos apresenta a um homem que observava, absorto, a enchente de maio. De repente, espalhafatoso, o senhor exclamou:
— Este rio não é do reino de Deus! — exaltando-se, de braços abertos para o nascente.
Eu, calado estava, calado fiquei; mas Acácio, a roer uns cavacos de silêncio, resolveu informá-lo:
— Este aguaceiro, amigo Quaderna, nasce no cocuruto de uma serra, onde as mariposas se encantam com o luar e põem seus ovos de riso nas correntes do Rio das Garças.
Quaderna, “autodeclarado herdeiro do trono do Brasil e aspirante ao título de gênio da raça brasileira”, com seu traje cáqui singular, de Rei e de Palhaço, circulou em torno de nós e, versejando, decantou:
— Se este rio é das garças, o meu paletó é de chita. / Se Chiquita fosse viva, amigos, eu por ela morreria.
Nabuco miou com o rabo eriçado, Dom Pedro Dinis Quaderna, o decifrador armorial, suspirou na sua bonomia régia, onomântica e transcendental.
E Acácio, companheiro de longas picardias e conchambranças, caiu no pote fundo do riso. Sem delongas, nem milongas, tirou a roupa e, tchibum!, deu uma cambalhota, caindo nas águas, para se lavar (e se rebatizar) naquele rio heráldico, maravilhoso e brejeiro.
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Segundo Ato
Entramos na igreja, Companheiro Acácio, Nabuco, Quaderna e eu.
Na frente do altar, Quaderna ajoelhou-se e mastigou uma prece para os desvalidos. Pouco depois, incomodado, pediu silêncio a dois bêbados que o ladearam. E, em seguida, puxou um terço em honra de todos os condenados. Não sem antes professar:
— “Nobres Senhores e belas Damas que me ouvem! Dirijo-me aos Africanos, aos Índios, Ibéricos, Mestiços, Árabes, Asiáticos e Latino-americanos, isto é, a todos os Brasileiros do mundo!” Somos herdeiros de Conselheiro, afilhados de Lampião, parentes próximos do Bendito, primo-irmão da Virgem Maria, a Divina Conceição. Rezemos para os que se foram, sem direito a missa de corpo presente, nem extrema-unção, em especial aos que partiram e desapareceram no esquecimento da Nação, nos porões da ditadura.
Um dos bêbados, à sua direita, resolveu aparteá-lo:
— Falou bonito, seu Zé! Tal qual um romanceiro.
Quaderna arrepiou os beiços, subiu o cós da calça, coçou o cocuruto, já deveras arreliado, e soltou-lhe, entre uma ave-maria e outra:
— Não sou nem Zé, nem Chico. Apesar de respeitar todos os Beneditos. Sou Quaderna, Conde da Pedra do Reino, e disso não abro mão, nem despisto. “Vocês estão diante de um Imperador e Rei, Dom Pedro Dinis Quaderna, o Decifrador-armorial, Gênio da Raça…”
— Muito bem!
O bafo quente e azedo do bêbado que o aparteara mexeu com a paciência do nosso visitante. Antes que a coisa campeasse para um chafurdo na Casa de Cristo, o Raimundo sacristão chamou pelos dois bebuns, prometendo-lhes alguns cálices de vinho nos fundos da sacristia.
— Miau… Shifz… futz…
— Não pronuncie más palavras, Nabuco, estamos na Casa do Pai. E vamos acabar logo com essa putaria. Opa!, me desculpe Senhora Sant’Anna, acabei esporeando demais a língua. Cala-te, boca!
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Terceiro Ato
— Tudo aqui termina, quer seja pobre, quer seja rico. Quer nasça homem, quer nasça dama. Tudo ao pó retorna!
Entramos no cemitério, e já ouvimos tal ladainha de mais um cachaceiro de Licânia. Este perdido nos eflúvios do álcool, a sofrer de uma ressaca tão condenada, que a morte lhe seria augusto prêmio.
— “Nobres Senhores… que me ouvem! O grande problema do Espetáculo do Mundo é que o Autor que o criou é um só, mas o Encenador que o dirige são dois! E vivem brigados, cada um querendo levar a Peça para seu lado! Os caminhos dos dois são opostos: um é da Vida, outro é da Morte!…” — declarou Quaderna.
— Bravo! Bravo! — saudou o pinguço.
Ocorreu então uma bagunça ou função religiosa. Nabuco lhe arranhou a canela fina; Acácio simulou seu ataque à coice de burro mulo, Dom Quaderna conteve seu cocorote daqueles de afundar juízo aprumado e eu, a vontade de empurrar o desgramado ladeira abaixo. Dizem as más línguas que o tal biriteiro, assustado, desembestou léguas mil e ainda não foi para o Céu nem para o Inferno, porque ainda não parou de descer a ladeira da vida; pois, só então, poderá fazer a sua viagem final.
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Cai o pano em silêncio, porém o espetáculo cá fora continua. Isso se o riso permanecer na comissura dos seus lábios, caro leitor, ou na memória mágica e jubilosa de quem permanece criança, quer no reino do claro ou do escuro. Se não, puff!, “nem mel nem cabaça.”
Toquem e cantem, porque eu quero sair daqui num Cortejo real!
(Ariano Suassuna, em As Conchambranças de Quaderna)
*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.