Para que se nasce

Por Márcio de Lima Dantas

 

O coração alegre aformoseia o rosto, mas, pela dor do coração, o espirito se abate.
Provérbios, 15:13

 

1. Prelúdio
Marluce
Luciana Fernandes Andrade de Lima Serafim (45 anos)
Vera Lúcia Fernandes de Andrade de Lima (39 anos)
Ana Lúcia Fernandes Andrade de Lima Serafim (34 anos)
Raimundinha
Sonnely (22.02.1967)
Sunnaly (02.09.1969)
Eliete Benjamin de Lima (13.04.1942 – 11.06.2001)
Keila (19.10.1976)
Socorro (23.01.1976)
Kaline (14.09.1977)
Francisco Kennedy Benjamin de Moura (10.02.1974)

2. Interlúdio
Essas três mulheres faleceram precocemente, Marluce (com 63 anos), Raimundinha (com 47 anos) e Eliete (com 59 anos). Há um denominador comum, haja vista que todas três pisaram chãos de terras inóspitas, nunca se negando qual trabalho que fosse, contanto que gerasse recursos para o um homem.

Com efeito, esses lares não tinham o que chamam de homem provedor, pois os casamentos desandaram logo cedo, outorgando o título de “mulheres separadas”. Havia que continuar. Crianças em uníssono entoavam o coro da luta, da escola e da necessária alimentação diuturna. E separadas de seus esposos, continuaram à labuta doméstica, dividindo-se em tantas jornadas a que, quase sempre, acontece à condição feminina, mormente as separadas, tão mal vistas pela sociedade e, muitas vezes, pela própria família, mesmo que tenham optado por permanecerem sozinhas, não se permitindo refazer sua intimidade emocional ou física.

Ora, todo mundo sabe que os discursos oriundos do senso comum são de direita, reproduzindo um status quo necessário para azeitar a gramática de uma cena social necessária às classes que material ou simbolicamente e exercem o jugo e o controle da vida social, fazendo valer pela violência ou por meio de falas sua necessidade de controle, para se perpetuar no poder político ou no controle das instituições sociais.

Isso mesmo, aceitaram com resignação os tirânicos discursos coletivos, pondo as mulheres em condições de cárceres nas suas próprias casas, cujo destino obrigara a tomar à frente a administração doméstica, vindo a ser mulher e homem ao mesmo tempo: pai e mãe da prole.

Precisa ser muito ignorante para não compreender essa cruel necessidade da vida social, pois há que ungir alguns – machos e fêmeas – como espécie de cordeiro imolado, sacrificando, quase sempre, as melhores crias, para que o restante do rebanho folguem o fato de serem proclamados como “normais”. Então, corpos são lacrados com chaves de uma crueldade subliminar, para que certas mulheres, aqui no caso, as “separadas”, sejam aprisionadas em celas nos quais o discurso não se constitui como orações completas (sujeito-predicado-objeto), mas pode ser dito como locuções (advérbios, adjetivos), ou seja, na esfera do implícito. Acontece que todo mundo sabe como se organizam os períodos gramaticais, a força advinda do senso comum, sendo que grande parte das pessoas reproduzem sem qualquer consciência essas cobranças, entoando um canto coral resguardador de paradigmas bastante convenientes a certos estratos da sociedade.

Assim sendo, essas três mulheres com datas de falecimento próximas, pertencendo a uma mesma geração, submetidas ao mesmo Ar do Tempo, conduzidas a modos de encarar ou decodificar a realidade através dos mesmos paradigmas, quer dizer, não somente a maneira de se autorepresentar, mas, de outra parte como eram vistas e a que preconceitos foram submetidas, os limites que eram determinados por meio da linguagem, recebendo inúmeros apelidos, tendo que engolir caladas. Hoje menos, mas há um certo tempo atrás as mulheres separadas eram vítimas de uma vigilância implacável da sociedade, quiçá, também da família, com seus interditos e uma série de tabus a serem respeitados.

Assim sendo, essas três mulheres de destino assemelhado, de experiências de vida convergindo para a mesma área cujo simbolismo ampara o que a sorte não se fez presente, muito menos o que houvera de deter a crueldade de um social sedento de assinalar algumas com o timbre do fracasso, somente por que os casamentos não deram certo. Bem se sabe quando há um conluio de signos permitindo entrever e logo apostar na possibilidade de um casamento prosperar. Um olhar arguto é capaz de adivinhar o que vai suceder, mesmo que não esteja agourando. Constata-se o que se derrama sob a pele do corpo. Não se pode conter certas coisas que vazam pelo semblante: olhar e timbre da voz.

Destarte, das mulheres demandam-se trabalhos maiores, como se não bastasse o cumprimento das ordens do corpo. Outorgando às separadas o domínio dos sentidos, a domesticação da libido, para evitar chamar a atenção dos que se arvoram vigilantes da ordem e dos chamados bons costumes. Muito certamente, ao se separar do marido, essas mulheres encontram um caudal de obstáculos para se refazerem e tocar a vida, com suas crianças ao redor de si. Só para ficar em um exemplo da obrigatoriedade das ordens do corpo, podemos citar inexorável menstruo mensal.

Como dizíamos, há que remarcar os intermináveis trabalhos dos dias. Tendo que exercer uma qualquer profissão, para gerar recursos que paguem as despesas de casa. Ademais, a mulher detém uma terceira jornada, visto que ao chegar em casa tem que manter a ordem e as atenções dos filhos, não tendo hora para se recolher e dormir.

Onde estariam os homens…. No caso dessas três mulheres, em nenhum lugar que se possa avistar. Mesmo considerando um longo raio, nada alcança a mira ou rastro; vestígio algum. Sumiram nessa saliência convexa, e conveniente, da instituição chamada “separação”. Situação que atiram as mulheres à solidão e as obrigações historicamente construídas para o sexo que fica responsável pela parte mais pesada. Além do mais, impõem uma obrigatória castidade para o resto da vida, sob pena de serem indigitadas como prostitutas. Trancafiam corpos com falsas chaves de uma moral ultrapassada e hipócrita, cuja lei segue dois pesos e duas medidas: para a burguesia e a classe média, um peso; para as classes populares ou os arremediados, outro peso.

É preciso dizer que isso não serve para as Classes Dominantes? O trabalho não é uma atividade servil, mas uma expressão da alma (Nise da Silveira), conferindo ao indivíduo fronteiras que abarcam diversos campos constituintes de uma determinada Psiquê. No que diz espeito a essas três mulheres, seria organizar um mapa existencial no qual múltiplas regiões circunscrevessem uma rotina salutar, com um trabalho personalizado, acompanhamentos dos filhos na escola, residência dignamente confortável e atividades de lazer junto aos amigos e familiares.

Quem foi o autor desse discurso? Onde está escrito, que ninguém sabe, ninguém viu? Era só o que faltava! Cito de memória: forma é conteúdo sociohistórico decantado (Adorno).

Familiares generosos não cortaram os cantos da messe, permitindo a essas mulheres a sobrevivência por meio de uma colheita tão-somente para garantir a sobrevivência de si e dos filhos. A lei da impermanência se cumpriu: nada é para sempre, tudo transmuta-se. Os filhos cresceram, algumas moças fizeram bons casamentos, outras se deram bem, firmando-se como proprietárias de estabelecimentos comerciais. Para não desmentir o destino da mãe, outras/outros fracassaram.

Contudo, o certo é que a maioria, em lídimo amor pela mãe, permaneceram como cúmplices, conduzindo para onde quer que fossem a mulher que renunciou aos chamados mais fáceis de uma vida. Chancelaram o total desinteresse pelo que fora o pai biológico. Esses que se arvoram a serem donos do mundo esquecem que existe uma coisa chamada amor. Isso mesmo, parece até que as vicissitudes e os momentos difíceis passados em comum pelas pessoas funcionam como espécie de grude, fazendo com que certos laços sejam mais estreitos.

Não sei direito, mas, talvez, certas dores e momentos aziagos, façam se achegar por meio da cumplicidade um amor já existente. O de mãe e filhos. Então temos a responsabilidade de cuidar, partilhar e proteger os que estiveram juntos durante os momentos difíceis. Curioso é que esses liames transcendem qualquer coisa advinda do social, configurando personalidades atrevidas. E desde quando isso tem importância, se o homem abandona a mulher com seus filhos, inclusive esquecendo de enviar a pensão alimentícia todos os meses?

Acontece que quando os pequenos roçados das vazantes cedidas por familiares ou conhecidos estavam no ponto da colheita, firmes e grávidos de primícias, eis que a vida insiste em ganhar qualquer partida do jogo, manuseando o efeito surpresa. As Parcas pouco se interessam pela caminhada dos sencientes, detendo-se com indiferença sobre o que vai receber a sentença de morte.

 

3. Adagio lamentoso
Raimundinha de Tiva era uma mulher franzina de corpo, enclenque e setemesinha, sempre solícita e gentil com todos. Professora de classes fundamentais, fora amada por seus alunos, que a tinham em alta conta. Passava a imagem de alguém extremamente frágil. Crasso engano. Por vezes, as aparências enganam. Haja vista o que passou e o que teve que ultrapassar, com unhas e dentes as atribulações que a vida imprimiu quando do seu contato/embate com a realidade.

Casou com homem moreno, motorista da ambulância do hospital da pequena cidade. Viveram o suficiente para terem duas filhas. Quando da separação, voltou à casa paterna, nunca mais saindo. Não havia motivo para se falar mal dela, estava sempre ocupada com as tarefas domésticas ou na criação das duas filhas.

Aos quarenta e sete anos foi acometida por forte dor de cabeça, sendo conduzida ao hospital da cidade. Os motivos da sua morte são um tanto vagos. Do hospital foi levada para Mossoró e depois para Natal, ainda chegou a ficar na UTI, mas não foi possível reverter seu quadro clínico. Veio a óbito. Houve quem dissesse que caiu no banheiro do hospital de Patu, por conta de um AVC.

Marluce passou um tempo em Patu, logo vindo residir em Natal. Tinha a estatura mediana de uma mulher, era de um moreno claro, sempre vestida discretamente. Quase não saia de casa. Espirituosa, gostava de rir e fazer rir. As três filhas levaram sorte ao encontrar companheiros que trabalhavam e as amavam. Sendo que uma foi morar em São Paulo com o esposo. Certa vez, foi lhes fazer uma visita. Sentiu uma forte dor de cabeça que não passava. Não conseguiram conter o AVC. Faleceu no Pronto Socorro. Foi sepultada na cidade de seus ancestrais.

Eliete, filha da parteira Mãe Rosa do Patu-de-fora, era de pouca altura, um tanto magrinha, porém graciosa, os cabelos extremamente lisos, como os de uma índia. Conversadeira, falava rápido, todavia discreta no/do que falava. Se fazia um tanto de distraída, mas estava atenta ao seu interlocutor, não deixando passar nada. Olhos perscrutadores e buscando compreender o que se passava no imo do interlocutor. Se alguém quisesse comprá-la por lesada ou distraída, ia perder o dinheiro Sempre fora assim. Construiu uma casa de alvenaria vizinha à casa de taipa da mãe, ali criara as quatros meninas e o rapaz. Não gostava de andar na vizinhança, era uma mulher da sua casa. Tampouco não gostava de novidades, preferia a rotina de dias iguais; como todo mundo sabe, essa forma de compreender o cotidiano e o transcorrer dos dias, outorga um equilíbrio na medida em que não gera expectativas, ou seja, um amplo domínio sobre as coisas e as pessoas do seu entorno.

Contudo, logo que as três filhas cresceram e se deram bem como proprietárias de estabelecimentos comerciais numa cidade próxima, prosperando na vida, construíram uma boa casa para a mãe e o irmão. O destino sobranceiro, parece estar atento aos fulgores emanados de um bem estar resultado de grandes esforços e de dias necessários a um trabalho que não dá tréguas. Essas três filhas mulheres foram acostumadas, desde pequenas, a compreender a vida por meio de uma ótica que levasse em conta o trabalho como algo edificante e capaz de redimir pessoas dos sacrifícios e da pobreza material. Suas origens lançavam nas ações a obrigatoriedade de serem honestas e não trapacearem ninguém. Como que um implícito. Eliete foi vítima de uma enfermidade extremamente agressiva, vindo a falecer depois de um doloroso tratamento em Campina Grande.

Por fim, o que aqui foi apresentado e discorrido, tendo histórias de vidas como exemplo, nos leva a refletir acerca das ironias da Fortuna, que passa por cima de credos ou maneiras de se comportar, apenas imponto cruelmente dores e penas que as mulheres já haviam compreendido como saldadas, pagas, por tanta luta na vida. Tosco engano, ninguém confie na capacidade de artimanhas do destino, sempre detendo uma carta na manga para fazer valer o efeito surpresa. E se pensamos que o tempo é de júbilo e de finalmente se instaurar as leis do armistício, eis que ainda há a obrigação de se cumprir uma última conta do rosário. Ninguém esperava que a última estação, a última parada, fosse a morte súbita, com enfermidades que, muitas vezes, nem esperam pelos ritos de despedidas. O luto é antecipado. Pranto e ranger de dentes ecoam em um firmamento surdo, indiferente, com o travo amargo de um semblante lívido no qual nenhuma palavra de justificativa ou sequer desculpas condutoras a uma compreensão. Foi feito. Está encerrado.

Essas três mulheres e seus destinos me fizeram lembrar fortemente das três graças da mitologia Grega. Faziam parte do cortejo de Afrodite, sempre alegres e de bem com a vida, famosas por estarem sempre relacionadas aos louvores do estar no mundo, abençoando por meio de dádivas os detentores do gosto de aproveitar o tempo, o carpe diem, sempre procedendo libações de agradecer um existir que se confunde com prazer e como quase que uma obrigação de aspergir todos os dias o perfume da gratidão.

São os que folgam, quer na alegria ou tristeza, e encontram sempre motivos por despertar sob a límpida luz advinda dos cavalos em fogo do deus Apolo. As Graças também estão associadas à prosperidade familiar e à boa sorte, bem como a abundância e a fortuna. Tália seria responsável pelo nascimento e cultivo das flores. Eufrosina seria assisada por incutir a alegria e Aglaia pela claridade.

Pelo visto, essas três mulheres aqui citadas, conduzindo seus rosários de responsabilidade e penas, de fora a fora, na vida cujo casamento não deu certo, menos por elas, mas a população da pequena cidade no ermo de um sertão distante do litoral, sabem muito que se deveu a homens com uma mentalidade patriarcal e misógina, tornando pública o que deveria ser parte da intimidade de um casal. Ora, além de terem ficado com a prole, tiveram que serem expostas à humilhação pública, de uma crueldade que não tem pena nem compaixão das mulheres, visto terem invertido toda a história acontecida no interior das casas. Em suma, além de rebolarem as mulheres ao Deus dará, ainda elaboram uma versão do acontecido, culpabilizando as mulheres.

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