PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCCLIII)

Clauder Arcanjo*

 

Prazer na escrita

 

Para Galileu Viana

 

Escrevendo, aprendi que a felicidade não consiste em poetar, mas em ser poetado por algo ou alguém que não conhecemos.

(Giorgio Agamben, em Coisas que vi, ouvi, aprendi…)

 

O prazer na escrita é algo quase indescritível, pelo menos para mim, caro leitor.

Comecemos com o que, de início, me move: o mote, como chamam os cantadores nordestinos. Ele me surge numa manhã ensolarada, às vezes numa tarde cinza, outras vezes na calada da noite. Não foram poucas as situações em que tive que me levantar e tomar nota apressado, com receio de perder a ideia preliminar, da semente do texto ou do poema.

O ato de levar tudo para o papel: conceber a trama, escolher a melhor sequência, a palavra mais adequada para um trecho específico… tudo isso ocorre antes na minha mente. Vago pela casa com a primeira versão brotando nos miolos. Neste momento desligo-me do cotidiano. Minha Biscuí bem sabe que não adianta me chamar: a voz não me chega à mente. Encontro-me imiscuído noutra realidade: o mundo literário.

— Biscuí?

— Ahn!…

O diálogo no máximo se reduz a isso. Não me julguem mal-educado. O ofício de escritor nos cobra um preço, e os que nos rodeiam (familiares e amigos) hão de entender as idiossincrasias de quem opta por este sacerdócio.

E as influências? Ah!… Existem e são muitas. Elas pululam quando pego a caneta: em certos momentos, disfarçadamente; em outros, de forma descarada.

No meu caso, Machado de Assis é figurinha carimbada, como dizem os mais jovens. O Bruxo do Cosme Velho sempre fica no meu encalço, a colocar o dedo de mofa e de ironia diante dos meus escritos. Companheiro Acácio, cria minha e filho bastardo de Eça, é outro que lê tudo que escrevo em voz alta. Alerta-me para as construções inexatas, para os meus rompantes barrocos, sem mencionar as vezes em que, enraivecido, rasga tudo e me pede que esqueça o sonho de me tornar escritor. “Pare e vá ler os clássicos!”, ele me assaca. Amigo leitor, Acácio é um despeitado. Dou-lhe ouvidos, porém sempre com os dois pés atrás.

Semana última, o amigo Galileu ligou-me para ler uma passagem de Mário de Andrade. Transcrevo-a:

 

Não é possível a gente conceber a formação dum espírito sem influências, fruto unicamente de experiência pessoal porque isso contraria as próprias leis da psicologia. Quanto à originalidade, se historicamente ela é duma importância capital na evolução das artes, ela não tem nenhum valor conceitual na verificação da obra-prima. E pensando no dilúvio de espíritos que nem bem surgiram, desapareceram já, sem dar o que prometiam ao movimento moderno brasileiro, tenho certeza que pra muitos foi a vaidade pífia de originalidade que os desarmou.

 

Acácio, em um assomo de guerrilheiro, convocou uma legião para me convencer de que tudo o que eu escrevo é de uma originalidade pífia. Cervantes, Graciliano, Drummond, João Cabral, Quintana, Bandeira, Cecília, Clarice, Moreira Campos, Cyro dos Anjos, Padre Antônio Tomás, Tchekhov, Dostoiévski, Tolstói, Borges, Maupassant, Baudelaire, Saramago…

Fecho o meu caderno de anotações e saio para a rua. Cá fora, numa árvore desfolhada, um canário me consola com um canto tradicional, e prontamente reconhecido por mim. De repente, uma imagem da infância assoma e…

Corro para casa, expulso Acácio da minha escrivaninha e entrego-me radiante à concepção de uns rabiscos ao meu modo.

Quanto às influências, leitor, que elas me sigam sem me atrapalharem. Preciso escrever: se é doença, não quero cura; se é mister pífio, só o tempo dirá.

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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