Pílulas para o Silêncio (Parte CCCLIV)

 

 

                                                              Clauder Arcanjo*

                                            Lições do mestre

 

                                             Para o amigo José Nicodemos

                                                  (in memoriam)

 

A tristeza, a compreensão e a desigualdade de nível mental do meu meio familiar agiram sobre mim de um modo curioso: deram-me anseios de inteligência.

(Lima Barreto, em Recordações do escrivão Isaías Caminha)

 

Todas as manhãs, ele se acordava com algumas passagens de os sertões, de Euclides da Cunha, ainda na remela dos olhos.

Espreguiçava-se, colocava os óculos de lentes grossas e levava a vista em direção ao velho tomo acerca da saga de Antônio Conselheiro. A presença daquela obra clássica naquele pequeno ambiente, misto de quarto de dormir e biblioteca, tornava-lhe as noites quentes mais agradáveis.

Levantava-se e seguia para o fundo da casa. No pequeno banheiro, fazia a barba e tomava um banho frio, como de costume. Vestia-se, sentava-se à mesa e tomava uma xícara de café preto com um pedaço de pão. Acendia um cigarro e retornava para a companhia dos livros. Antes de sair para os compromissos de revisor na reitoria, passava as mãos nas lombadas dos Sermões, de Vieira: espécie de pedido de bênção; ele tão descrente das coisas do espírito.

Na lida como copidesque, como estratégia própria de não se enervar devido às construções desrespeitosas à língua de Camões, solfejava alguns sonetos de estima: Petrarca, Bilac, Vinicius de Moraes. E, sem falsa modéstia, até alguns da própria lavra.

De quando em vez, levantava-se, saía para o pátio arborizado, riscava o fósforo e acendia mais um cigarro. Considerado por muitos um indivíduo casmurro, poucos lhe dirigiam a palavra. Ele, sentado num banco ao fundo, sorvia a fumaça, perdendo-se em divagações mil. O dia escorria por entre as horas insípidas. No fundo da gaveta da escrivaninha, o novo livro de Carlos Heitor Cony.

Final da tarde, caminhava pelas ruas, cabisbaixo. Quase ninguém dava por sua presença.

À noite, depois do banho e do jantar frugal, entregava-se ao exercício da crônica diária. Puxava pelas lembranças do tempo de menino, mencionava obras indispensáveis, aconselhava os escribas sempre afoitos — e, no mais das vezes, desarmados para o ofício da escrita — a lerem Graciliano e Machado.

— O médico estuda biologia, anatomia, histologia, patologia… para, só então, partir para o exercício da profissão. E por que nós, homens das letras, não queremos estudar morfologia, gramática, sintaxe, regência verbal…? — defendia quando nos encontrávamos.

Em tais ocasiões, o mestre Nicodemos (era assim que eu o saudava) soltava-se. De início um pouco contido. No entanto, quando eu lhe pedia para narrar a passagem final de Os sertões:

 

Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5 mil soldados.

 

Ou um trecho que apreciava do “Sermão da Sexagésima”, de Padre Antônio Vieira:

 

Oh que grandes esperanças me dá esta sementeira! Oh que grande exemplo me dá este semeador! Dá-me grandes esperanças a sementeira, porque, ainda que se perderam os primeiros trabalhos, lograr-se-ão os últimos. Dá-me grande exemplo o semeador, porque, depois de perder a primeira, a segunda e a terceira parte do trigo, aproveitou a quarta e última, e colheu dela muito fruto. Já que se perderam as três partes da vida, já que uma parte da idade a levaram os espinhos, já que outra parte a levaram as pedras, já que outra parte a levaram os caminhos, e tantos caminhos, esta quarta e última parte, este último quartel da vida, por que se perderá também? Por que não dará fruto? Por que não terão também os anos o que tem o ano? O ano tem tempo para as flores e tempo para os frutos. Por que não terá também o seu Outono a vida? As flores, umas caem, outras secam, outras murcham, outras leva o vento; aquelas poucas que se pegam ao tronco e se convertem em fruto, só essas são as venturosas, só essas são as que aproveitam, só essas são as que sustentam o Mundo. Será bem que o Mundo morra à fome?

 

Ganhava foros de garboso orador. Sua voz forte e, em alguns pontos, empostada alteava-se. Eu, silente e maravilhado, a ouvi-lo. Entre um café e outro, confidenciava-me decepções: o descuido dos professores com a língua materna, o desleixo dos escritores com a gramática, a mediocridade de algumas canções de sucesso.

 

& & &

 

No final de uma tarde de sábado, seu Nicó (epônimo carinhoso com que alguns o saudavam) sonhou que “o mundo ficaria todo cheio de livros, clássicos, volumosos”. Serenamente se despediu. Chico de Neco Carteiro o recebeu nas hostes celestiais, defendendo, perante São Pedro, que o seu conterrâneo era digno de permanecer entre os eleitos.

De agora em diante, caro leitor, não contaremos mais com a companhia de José Nicodemos nas páginas dos jornais. Muito menos eu poderei colher benditas orientações quanto ao mister de escritor.

Entretanto procurarei honrar suas lições e manter viva a paixão pelos grandes nomes da literatura brasileira e mundial.

Saudades, mestre Nicodemos. Saudades.

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

Deixe um comentário