PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCCLVI)

 

Clauder Arcanjo*

 

Pintura “Largo da Carioca” (1816), de Nicolas Antoine Taunay

 

Digressões cariocas

 

Pela Avenida Presidente Vargas, o táxi desliza. Um pouco da história recente do Rio retorna à minha mente: a modernização da capital da República rasgou morros, derrubou casas, enfrentou protestos. O prefeito Pereira Passos sonhava com Paris, enquanto São Sebastião do Rio de Janeiro ainda valorizava os becos e ruelas da velha província.

Embaixo das marquises dos prédios modernos, uma legião de desvalidos. A fome impera sob o céu nevoento dos cariocas.

Fim da corrida. Agradeço ao motorista, que estava preocupado com o futuro do seu time no campeonato brasileiro de futebol. Entro na livraria. Prédio antigo, as paredes cobertas com prateleiras vetustas marcadas pelos anos. Vejo nelas a elegância dos antigos edifícios públicos, hoje já tão fora de moda. Sobre os balcões, lançamentos que não me chamam a atenção. Campeões de venda, anunciam os adesivos fixados nas capas.

Vou para a cafeteria no piso superior. Com uma nova edição de Benito Cereno, de Herman Melville, um tomo de filosofia e outro acerca do período pós Segunda Grande Guerra.

Escolho uma mesa mais ao fundo. A garçonete me saúda. Fiz-me conhecido naquele ambiente, apesar do pouco tempo que estou em solo fluminense.

Entre um café e outro, leio algumas páginas das três obras. Descarto a tradução de Melville, canso-me das digressões filosóficas e detenho o meu olhar nos relatos dos dramas europeus recentes.

Na mesa ao lado, um senhor de meia-idade rabisca num caderno de espiral. Com um lápis de ponta grossa, numa ligeireza que me chama a atenção. Ah se eu escrevesse meus textos nessa velocidade!, penso. Acorre-me a lembrança de Paulo Mendes Campos alertando-nos acerca da lentidão no ofício de escritor. Com todo o respeito ao escritor mineiro, pago depressa a conta e resolvo levar o livro de história.

 

& & &

 

Retorno ao meu quarto de hotel. É quase fim de tarde. Abro a janela e a catedral convida os fiéis para a missa das cinco. Que Deus me perdoe, mas hoje não sou boa companhia para os santos.

Tento uma soneca para encurtar o tempo da minha tristeza: saudade de casa. Os lençóis não me abraçam.

Sento-me à escrivaninha e resolvo reler Alexandre e outros heróis, do velho Graça. Entretenho-me com as narrativas do mestre de São Bernardo. E a noite me flagra “cheio de conversas”: na companhia de Alexandre, com “suas histórias fanhosas”; de sua esposa Cesária; de Das Dores, afilhada do casal; de Seu Libório, cantador de emboladas; de Mestre Gaudêncio, e do cego Firmino.

— E aquele negócio de onça-pintada que numa noite ficara mansa como bicho de casa?

— Acácio! Você por aqui?

Entramos noite adentro, a revisitar (e inventar) causos interessantes “que se enfeitavam e pareciam tão verdadeiros” quanto os narrados por Alexandre-Graciliano. “O que um dizia o outro achava certo.”

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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