Diálogo com Murilo Mendes

Clauder Arcanjo*

(Retrato de Murilo Mendes, de Candido Portinari)

                                                       

                     Pertenço à categoria não muito numerosa dos que se interessam igualmente pelo finito e pelo infinito. Atraem-me a variedade das coisas, a migração das ideias, o giro das imagens, a pluralidade de sentido de qualquer fato, a diversidade dos caracteres e temperamentos, as dissonâncias da história.

(Murilo Mendes, em Poliedro.)

 

Nenhum fato ou informação me atrai. Sem projeto para a noite, recolho-
me e resolvo reler Poliedro. Quando dou por mim, vejo-me em diálogo com o
autor.
— Murilo, estou, admito, mais para preguiça hoje.
— Penso que se a preguiça escrevesse estaria atenta à lição de Pascal
que condenou em poucas linhas a hipérbole, da qual não escapam às vezes
certos mestres do finito, por exemplo Stendhal, Machado de Assis, que
entretanto tinham a cabeça, o nariz e a mão — logo a pena — bem
assentados.
— Sempre considero fundamental, Murilo, estar assentado sobre o
prisma da precaução, apesar do brilho fulgurante de certas hipérboles, quando
o exagero cai bem com a simplicidade do que cerca o concebido. Ou seria
concedido?
Nesse momento me chamam para o lanche. Sobre a mesa uma
melancia.
— A melancia aberta: pão vermelho suspenso diante da boca dos
pobres; um espetáculo para o estômago, a vista.
Silencio, faminto. Minha mente se sente invadida por fulgurações da
infância.
— O menino experimental ateia fogo ao santuário para testar a
competência dos bombeiros.
— Sim, Murilo, como às vezes eu defendo a mediocridade de certos
ícones literários, tão somente para atear chamas ao julgado clássico com o
intuito de verificar se o brilho desses resiste.
— Felizes os visionários: deles é o reino infinito da visão.
— Felizes os carbonários: a eles será reservado o fogo alto da ilusão —
devolvo.
Percebo que a minha resposta faz com que o poeta de A idade do
serrote se feche em copas. Poliédricas copas.
— Quem convida para um longo baile os anônimos, os esquecidos, os
párias da grã-cidade?
— “Poucos, talvez nenhum; a começar por mim e por ti…”
Outra mancha de silêncio nos envolve. Murilo Mendes se levanta e me
declara:

— O anteontem prepara as rodas do amanhã.
— E quem preparou as rodas de hoje? — indago.
O poeta de As metamorfoses esboça um riso e confessa:
— Sem esperança não surge o inesperado.
— Sem o inesperado, Murilo, a esperança não cresce, muito menos
habita entre nós.
— O pássaro absoluto voa sem vento, sem o dia nem a noite.
— Absolutamente, somente no campo do absoluto… — concordo.
— O mito pré-fabrica a história, superando-a.
Cansado com aquele jogo poliédrico, em que o mestre de Juiz de Fora é
um exímio artífice, calo-me e respiro fundo.
Murilo se aproxima ainda mais de mim, provocando-me:
— Os deuses jejuam de pão e tudo mais. Menos de metáfora.
Olho dentro dos seus olhos délficos e arremato com um aforismo seu:
— “Os deuses vingam-se dos homens, morrendo.”

Fonte: Poliedro, de Murilo Mendes (São Paulo: Companhia das Letras, 2017).

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-
grandense de Letras.

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