Visita a Licânia
Clauder Arcanjo*
(Brasão de Santana do Acaraú/CE.)
Volto à minha província e sinto-me estranho na cidade natal.
Mudei eu, ou mudaste tu, querida Licânia? Penso que nós dois. Sim, mudei eu por ter ganhado o mundo e perdido as tuas lições. Sempre retorno aqui, a fim de caçá-las: na beira do rio, na alvorada regida pelo passaredo, na gente humilde que se senta na calçada para celebrar as tuas noites dadivosas. E mudaste tu, querido berço, porque não és mais a mesma. Algo de ti se foi. A Avenida São João, por exemplo, que era em terra batida, hoje se apresenta modernosa com seu piso sextavado. Coisa de Capital!, alguns bestas propagam. E quem soltará pião em um piso assim? Qual criança celebrará a chuva nesse tipo de piso? Quando era de terra nua, os açudes infantes despontavam em toda a sua extensão. Sem mencionar que a caixa d’água, monumento que eu menino vi ser construído, foi destruída; alegaram que a ferrugem tinha comprometido a estrutura. E te indago, Licânia: vão destruir também aqueles em que a ferrugem da desfaçatez já corroeu a honra?
Ah, Licânia! Quero te fazer um poema, mas ele fica entalado na garganta do verso e não se revela para nós dois.
Tento dormir, no entanto os teus fantasmas me despertam, a me lembrarem de que eu me tornei um exilado na própria terra. Sim, culpa minha, minha máxima culpa! Ou seria culpa daquele fedelho que prometeu a si mesmo que retornaria engenheiro? Não saberia responder. Só sei que tive que te deixar, seguir para Fortaleza, lutar contra a minha saudade, enterrar o meu choro e me tornar um “vencedor”. Porém, hoje eu bem sei, perdi muito de mim para alcançar tal vitória.
Minha sorte, graças a Deus!, foi ter encontrado minha musa aqui, nos festejos de nossa padroeira. Sim, a Biscuí, filha de uma santanense, ofertou-me o regaço substituto daquele de que eu tive que abrir mão ao rumar para terras outras.
Todavia, hoje cá estou, ouvindo os teus pássaros, celebrando mais um ano perante a imagem de Sant’Anna, pedindo a bênção de minha mãe, já marcada pela idade avançada.
Há pouco, sentado na cadeira de balanço de meu saudoso pai, eu te rogava, Licânia: não me abandones jamais. Semeias as minhas noites com as reminiscências infantis; não me deixes esquecer de que sou daqui. Tenho compromisso com a nossa gente, haverei de zelar pelo nosso patrimônio cultural e escrever as minhas histórias bebendo nos causos do nosso povo: sofrido, mas digno.
Voltarei, terei que ir embora.
Levo tua lembrança nesta lágrima que, neste instante, escorre no rio do meu rosto e se deposita na comissura destes lábios trêmulos.
Adeus, Licânia! Até logo mais, terra amada.
*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.