O MASCATE

 

Clauder Arcanjo*


(Pintura “O Mascate”, de Firmino Monteiro.)

Chegou como se viesse de um lugar onde o riso se perdera. Na face, a boca marcada pelo silêncio e os olhos enviesados pelo espanto.
Quando pôs os pés na pedra do Mercado Público de Licânia, o portal abrira há pouco. Nem o Vilemar das Tripas aquecera ainda sua trempe para receber a clientela em busca do café coado e do tira-gosto de buchada de bode.
Notou que o passaredo fazia festa nos galhos do velho tamarineiro. Arriou então o bornal, esticando em seguida um pano axadrezado no piso mais ao canto. Sobre ele, arrumou os objetos que trouxera para a feira do domingo. Chaleiras, panelas, chás, unguentos, infusões e uma meia dúzia de livretos rotos.
Quando o público se fez presente ao Mercado, ele se ajoelhou, fez uma prece silente, ajustou o cinto na cintura alta e disparou:
— Venho de uma terra onde a morte não se achega, trago remédios para as almas ronceiras, sem falar nos chás que espantam o castigo dos anos. Venham aqui conhecer o milagre da Terra da Alvorada Dourada, lá para as bandas da Serra do Nunca Mais, nos achegos das fronteiras do infinito, beirando o mundo do ainda nem visto.
De início, os bebuns se espantaram com aquele vozeirão cevado e, com pouco mais, recuperados dos tremores da abstinência, aproximaram-se para ver bem de perto aqueles prometidos.
O mascate preparou um chá com folhas pisadas num pilão esverdeado pelo tempo e ofereceu uma dose ao Gazumba, cujo corpo esquálido ainda tremia.
— Prove, meu rapaz! Isto aqui cura ferida braba, recupera fígado bichado e põe calor nos negócios de homem, já arriados.
Gazumba serviu-se. No começo, em goles miúdos. Logo depois, sentindo a barriga aquecida, derramou a mistura no bucho, com modos de quem entornava a primeira pinga do dia.
— Eita! — gritou o Zé Aguiar, que a tudo observava.
Gazumba, com os olhos vermelhos e a língua em brasa, saiu em passo esbodegado no rumo de casa.
— Hoje vai ter serviço na alcova deste homem! — alardeou o mascate, de peito aberto diante do sucesso do seu feito.
A roda em torno daquele estranho alquimista só aumentava. Até o padre Araquento acompanhava o movimento de longe.
— Sacristão, vá lá espiar esse forasteiro. Veja se ele vem apenas com conversa de feira, ou tem intenção de se meter na disputa aqui na terra pelas promessas divinas.
Raimundo Sacristão se dirigiu ao local em que o mascate imperava, ofertando benzidos para cura de titela seca, pedra nos rins e até para vista cansada.
As vendas corriam frouxas, rendosas, quando surge o vaqueiro Simão, cabra acostumado a costurar bucho de caboclo rasgado por peixeira afiada:
— Você promete cura para reima de Belzebu? Estou com um catarro há mais de mês; e o peito já pia, feito um pinto condenado.
O mascate abriu passagem, levou a mão para a cabeça do que se chegara, pediu para ver-lhe a língua, ordenou que ele dissesse trinta e três e, retornando para os seus pertences, sacou de lá um vidro pequeno com a estrela de Davi. Diluiu o contido no chá que o Gazumba tomara, dizendo:
— Tome uma colher pequena antes de dormir. Cubra o peito com o chá da hortelã mascada e evite, por ora, o vento da queda da noite. Em três dias, você estará curado.
O silêncio imperou após o receituário do mascate. O vaqueiro Simão se aproximou, pagou pela mezinha e se despediu de todos.
No final da feira, o mascate, de bolso cheio com o apurado, ia saindo, quando viu, na esquina do Mercado, o desconfiado Simão. Fez tenção de mudar o rumo, mas o vaqueiro já lhe atalhara o passo, anunciando:
— Você vem comigo, seu mascate. Se isso não me curar, vosmecê vai ofertar as suas tisanas na Terra dos Malditos.

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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