O alienígena (Parte X)

Clauder Arcanjo*

 

Pintura Julie Manet com gato, de Pierre-Auguste Renoir.

 

Ele correu pelas ruas com a coragem nos dentes. Apresentou-se em cada esquina com a valentia de um ser que nada temia.

Não se sabe se devido a tanta demonstração de bravura ou não, mas o que interessa para esta nossa história é que tudo silenciou. Nem um pio sequer se ouvia entre os becos e esquinas de Licânia.

“De quem se tratava?”

Você nem sequer imagina, caro leitor?

Não?!… Precisarei, então, recuar no tempo para que tudo fique bem esclarecido. Lembra o primeiro episódio em que citamos a presença de Federardo? Se não, esquecido leitor, seria o caso de voltar algumas páginas e revisitar o que lá escrevi.

Não quer voltar? Sendo assim, só me resta o recurso de transcrever tal trecho. Ei-lo:

 

— Alguns juram, mas nunca creia em juras de licanienses, que a primeira aparição (ou seria o primeiro sinal?) se deu numa sexta-feira, 13. Outros alegam que tal data se perdeu na memória do medo, pavor que apaga tudo, inclusive a crença na força dos Céus.

— Vixe, Maria!

— Melhor, Federardo, é não colocar a mãe de Jesus no meio desta história.

— Concordo, Companheiro Acácio, continue.

Acácio ajustou os óculos, arregalou ainda mais os olhos, e se aproximou da cadeira em que o jovem Federardo a tudo ouvia, atento, mas já com uma certa dose de medo.

 

Saibam todos que Federardo voltou. Desta feita, acreditem, precedido por seu fiel escudeiro: o cachorro Goiaba. Apesar de ainda filhote, havia em cada um dos seus pelos brancos a audácia de um intrépido guerreiro.

— Por aqui, Goiaba. Calma, muita calma! — instruía-o Federardo.

Ao perceberem que aquele cão espantava o possível alienígena, os licanienses se acercaram do vira-lata, festejando-o:

— Agora sim! Pode vir quem vier.

— Por onde anda, seu desgraçado? Estamos aqui. Licânia não tem medo de nada. Apareça, alienígena de uma figa!

— Viva Licânia! Salve o Goiaba!

Federardo não era chegado a rompantes, porém gostou da demonstração de carinho com que ele e o seu fiel amigo foram recebidos.

“Federardo sumiu por quê?”

E eu lá tenho resposta para tudo, seu mal resolvido? Só sei que eu, mero escrevinhador de província, não tive mais notícias dele. O que sei é que ele retornou, acompanhado. Melhor, bem acompanhado.

O prefeito reassumiu o comando da municipalidade e, como primeiro ato do seu gabinete, resolveu encaminhar à Câmara Municipal o pedido de concessão da Medalha João Cordeiro ao cachorro Goiaba.

O presidente da Câmara convocou os vereadores para uma sessão extraordinária, e tudo foi aprovado em rito sumário.

Na manhã seguinte, o carro de som correu a cidade, convocando todos os munícipes a prestigiarem o ato público em que se daria a entrega da mais alta comenda da cidade ao novo herói.

O adro da Matriz foi o local escolhido para sediar o evento. O povo foi chegando desde cedo, a Bandinha Furiosa animava os presentes com seus acordes, sem falar dos fogos multicoloridos que, de quando em vez, riscavam os céus da província em festa.

No palco, as autoridades dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário se revezavam nos laudatórios discursos. O protofilósofo João Américo foi encarregado de saudar o canino. Fê-lo em português clássico, destacando a galhardia do homenageado com citações em latim e grego.

— Não há orador como João Américo em toda a América Latina — regozijava-se Damiana. Esta dama, segundo as fuxiqueiras do Mercado, era mais apreciadora dos seus dotes eróticos do que do seu latim.

A coisa se espichou mais do que o planejado. Passava da meia-noite quando a medalha foi depositada no pescoço do Goiaba. Este, ao dar os primeiros passos, incomodou-se com o arrastar do metal nos paralelepípedos e… desabou de mata afora.

Um silêncio pesado caiu sobre a praça da Matriz. Neste exato momento, a iluminação pública piscou e… Licânia mergulhou numa escuridão indescritível.

— Alguém passou a mão na minha bunda! — gritou a primeira-dama.

— Levaram o meu relógio! — protestou o Seu Antenor.

Murros, tapas e gritos: uma verdadeira bagunça.

— …uuuuuuu… Auuuuuuu… uuu…

— Alguém cuide de trazer de volta o Goiaba! — clamou o padre Araquento, enquanto corria para dentro da sacristia.

— …uuuuuuu… Auuuuuuu… uuu…

Eu é que não ficarei para contar esta história. Exijo condições seguras para dar seguimento à minha narrativa.

— …uuuuuuu… Auuuuuuu… uuu…

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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