MEDICINA EM DESENCANTO

Intercessão do Beato Bernardo Tolomeo pelo fim da peste em Siena (1735) – Giuseppe Maria Crespi – Academia de Belas-Artes de Viena, Áustria


Toda força aplicada a um corpo é devolvida em
  igual intensidade.

O princípio da física virou lei nunca revogada.

E mais uma maçã na cesta do Sir Isaac.

Antes que aparecessem os primeiros mestres e doutores em jornalismo, não era preciso  ter pontuado 1000 no ENEM, para entrar numa redação.

Copidesques davam jeito às mal traçadas laudas dos focas.

Qualquer erro mais cabeludo, o pato do linotipista levava o chumbo.

Depois que inventaram as colunas e páginas de opinião, o movimento corporativista foi se refugiar nas assessorias de imprensa e dedos diversos começaram a maltratar  as velhas remingtons e olivettis.

O espaço antes ocupado  por advogados mais amostrados, passou a ser frequentado também por outros doutores boquirrotos.

Os médicos logo perceberam que, fugindo um pouco dos assuntos mórbidos , mantendo o raciocínio clínico e seguindo princípios da semiologia e terapêutica, poderiam transformar histórias de sofrimento e evoluções de cura, em artigos de jornais.

E foram brotando poetas, cronistas, contistas, romancistas e memorialistas. De aventais e cabelos brancos, esperando a hora e o tempo de pendurar o estetoscópio chegar, em noites de autógrafos.

Nem de longe ameaçado pela nova concorrência, quem  percebeu a usurpação foi Millôr Fernandes (1923-2012).

E  quem primeiro reagiu:

– São tantos os médicos virando escritores, que já sei o que vou ser quando me aposentar.

Médico.

Ginecologista.

A sátira do mestre das letras e de todas as artes impressas, emergiu na maré de tormentas, surfando as ondas pandêmicas e arrebentando outros desvios de função.

Nas redes sociais, a preponderante participação de esculápios em discussões de temática antes exclusiva aos causídicos e digital influencers.

Com as transmissões ao vivo das sessões dos tribunais superiores e depois das aulas do Professor Gilmar e da Dona Carmen, estava  se graduando  uma leva de discípulos de Hipócratesespecialistas em Direito Constitucional.

Houve até quem especulasse que não  causaria espanto, se começassem a aparecer bancas de advocacia em puxadinhos de clínicas e consultórios.

Os nosocômios ocupados exclusivamente pelos profissionais da linha de frente e a nouvelle vague dos teleatendimentos, levavam os esculápios a prescrever em podcasts, viver de mesa redonda, pulando de webinar em webinar.

Havia uma vingança maligna, que não separava Jório de Seu Trigo.

Jornalistas em disponibilidade, cientistas sociais desocupados,  professores no lockdown, estatísticos de catástrofes,  analistas de gráficos de  barras e colunas e pizzaiolos pululavam, se reproduziam e tornavam a  blogosfera, inóspita e irrespirável.

Eram deles, ouvidos os comitês científicos, as diretrizes e protocolos a serem acatados e seguidos fiel e obedientemente por pacientes e seus cuidadores.

E os médicos, como ficariam depois que a pandemia amansasse?

– Aqueles charlatões só sabem passar remédio pra piolho.

Bernardo Tolomei entre as vítimas da Peste Negra em Siena em 1348 ( 1735) – Museu de Belas Artes de Nîmes, França


(Publicado em 29/03/2021, o texto foi atualizado)

Tribuna do Norte, Blog Território Livre

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