Clauder Pílulas para o Silêncio (Parte CLIX)
(“Brazilian religion”, de Tarsila do Amaral)
Quanto tempo durou aquele instante
Não saberiam dizê-lo as palavras.
(Só para maiores de cem anos, de Nicanor Parra)
Na curva da tarde, quando a luz mais de mim sumia, eis que flagro a infinitude de um instante. Nele, confesso, desfilaram as imagens de uma infância já de mim longínqua, a voz dos meus pais (a cuidar dos meus atos, a zelar por minha educação, a guardar-me dentro das suas bênçãos e orações) e o passaredo incansável de minha província.
Como caberia isso tudo num mero instante, você cá me indagaria.
E eu sei!, pergunte à poesia que, desconfio, naquela tarde reinou soberana, como antes não havia.
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Insisto em descrever esta manhã chuvosa. Cato as palavras, escolho os verbos, lavo os adjetivos sujos pelas bocas dos oradores, enxugo os advérbios expostos ao tempo… e nada. Apenas a pálida impressão do que seria, caso se insurgisse, de dentro de mim, a construção verbal e poética deste incauto dia.
O verbo se envergonha quando é tamanha a beleza que me hipnotiza.
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— Alguém chegará aos cem anos? — Indaguei na praça vazia.
— Eu! Meu segredo para tamanha longevidade é o elixir da poesia. Tomo uma dose dupla na alvorada, outra tripla ao meio-dia e, ante de me recolher, uma garrafada com os versos mais sem cerimônia, para espantar a morte e o degredo — respondeu-me um pequeno homem, de vestes simples e de olhos de vidro.
— Eu não acredito! Licânia me dá a resposta que muitas cidades silenciaram.
— Para cada um, saiba, basta o seu mundo.
— E está o senhor ciente da sua sina: viver cem anos, somente curado com a medicina da poesia? — Indaguei-o, sob o manto sujo da razão.
Ele me deu as costas e saiu a solfejar uma canção de desprezo e comiseração. A letra pungente me lembrava das minhas desventuras de exilado de Licânia.
— Volte aqui, Poeta!
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Entre o silêncio dos instantes, dois versos pendurados no umbral da solidão. Um só me bastaria, porém o tempo dera-me o outro como mera precaução.
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Mudando de assunto, a musa me avisou que o corpo é imortal, e a poesia mortífera.
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Se um vazio de palavras ousar cair sobre o meu corpo, a minha mente haverá de resistir e cuspir estrofes de protesto.
Em litanias de sal, loucura e desprezo, pouco me importa.
Não me venha, Senhor do Destino, com a morte em silêncio invertebrado!
Caso isso eu pressinta, haverei de clamar (e espernear) pela companhia dos loucos a saírem de suas Caixas de Pandora.
*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.