Pílulas para o Silêncio (Parte CLXXXVI)
Clauder Arcanjo*
(Pintura “Filósofo em meditação” (1632), de Rembrandt)
Diário da Quarentena III
Para o escritor Marcos Ferreira
Na noite quente, a tentativa de retirar do cérebro a trama dos capítulos finais. O romance chupava-lhe as últimas forças.
Quando se julgava no fim da inspiração, eis que surgia um novo texto do bago espremido da criatividade. De início, tímido, claudicante. Pouco mais, firme e arteiro.
— E o arremate? — consumia-se.
Dormia — melhor, deitava-se — com a angústia da conclusão da prosa que lhe tomara três meses de cativeiro.
No outro dia, ao despertar, uma nova ideia:
— Vou enlouquecer o protagonista, antes que ele comigo o faça!
E elaborou um epílogo tão candente e belo que disparou, em voz alta:
— Ô morte bonita!
E os vizinhos ao ouvirem-no, julgavam-no digno da Casa de Orates.
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Escreveu um poemeto desenxabido e insosso. Ao mostrá-lo para a leitura crítica de um amigo poeta, este o fez alterando, de forma não intencional, o título que encabeçava a página.
O acaso deu um brilho inesperado ao que antes era sofrível.
O inesperado às vezes ressuscita a arte.
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Quando visitou a província, estranhou o nome das novas ruas.
Incomodado, resolveu arguir aos moradores quem eram aqueles nomes constantes das placas afixadas em cada esquina.
Não lhe deram nenhuma resposta, apenas julgaram-no um curioso, e muito metido, estrangeiro.
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Ri tão desbragadamente que, com pouco, não mais sabia a causa de tanta alegria.
Alguns senhores, sentados na esquina do Mercado Público, se incomodaram com os meus risonhos modos. Levantaram-se, bateram os chapéus (como a espantarem uma poeira imaginária), despediram-se e voltaram para suas casas.
Um deles, ao passar por mim, jogou-me um olhar de poucos amigos.
Outra risada, mais próxima da gaitada estupefaciente, assomou-me à garganta franca.
— Nossa cidade é um circo? — indagou-me um menino.
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— Este meu diário é digno de pena — eu concluía.
— Mas há uma meia dúzia de leitores que sempre acompanha seus escritos, escrevinhador provinciano!
— Eu sei. E deles sinto uma enorme pena. Não sei se me entende?
— Não, não entendo. Nem quero. E eu sou um deles, sabia?
— Agora eu compreendo por que sempre sentia uma enorme pena de você, meu caro amigo.
Saiu. Quando ele bateu a porta, vi-me sozinho. E uma forte inspiração surgiu-me: “Uma porta batida. A tarde se apresentava com a costumeira solidão…”
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Na casa vizinha, a música a decantar o abandono dos amantes. Em altos decibéis.
Na rua, o carro de som a conclamar a todos para a remissão dos pecados, não sem antes ajudarem financeiramente na edificação de um novo templo para o Senhor.
No jornal, as matérias pagas, decantando a seriedade de meia dúzia de comparsas, useiros e vezeiros do butim do erário.
Na pequena estante, Dostoiévski a convocá-lo.
— Preciso reler O idiota! Antes preciso concluir a leitura de Memórias do subsolo.
E, lá fora, a noite a se anunciar em pálido luar, sem nuvens.
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Mais uma vez a Senhora Depressão o abraçou. Tão insidiosamente, que ele, de início, não se deu conta daquela traiçoeira aproximação.
— Quero a tua vida, entrega-te todo a mim! — conclamou-o.
Negou-se a tal renúncia, lembrando-se do último mancebo que mantivera com ela. Até hoje ele levava na alma as cicatrizes daquela entrega malsã.
*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.