PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCXXXI) – Clauder Arcanjo
Um instante de vigília na pausa da tarde
O mundo e suas canções
de timbre mais comovido
estão calados, e a fala
que de uma para outra sala
ouvimos em certo instante
é silêncio que faz eco
e que volta a ser silêncio
no negrume circundante.
(Carlos Drummond de Andrade, em “Cantiga de enganar”)
Satírio esperou a tarde chegar para dar início à sua vigília.
Duas da tarde, Licânia regalava-se com a modorra dos seus habitantes e suspirava como se também entregue à sesta.
Três da tarde, as ruas espreguiçaram-se, e um ou outro cidadão espiava o mormaço das calçadas.
Quatro da tarde, Satírio quis desistir da vigília. Será que tudo lhe seria em vão?, inquietou-se.
Quando viu que Crisálida saía para a igreja, o relógio da Matriz se preparou para o badalar das cinco. E Satírio rogou aos céus pelo pecado das seis.
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Goliardo da Silva voltou à terra natal após anos no seminário. Alguns falam que retornou porque terminara os estudos e se revelara um homem sábio. Outros, porque não conseguira conter os arroubos da libido, fora expulso e tornara-se um cínico itinerante. “Os freios da carne são necessários para o exercício da sapiência”, satirizou o agnóstico João Américo, ao saber do seu retorno a Licânia.
Passada uma década, Goliardo revelou-se um empresário de sucesso. Dos parcos conhecimentos religiosos, fundou uma nova e rica igreja, casa aberta a todos os pecadores. Da “decantada sapiência”, fez-se conselheiro dos poderosos, a troco de régias participações nos negócios públicos. E, com os valores dos cínicos e pervertidos, abrira uma casa para consolo e exaltação dos instintos do corpo.
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Nenhuma canção lhe trará o ritmo de outrora, caso você tenha quebrado de vez a partitura dos dias.
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Quando quis acelerar, o mundo lhe pedira paciência. No instante em que se revelara manso, os vizinhos lhe exigiram ferocidade. Hoje, caduco e desdentado, mas unindo os atributos do paciente feroz, a cuidadora do asilo põe-lhe em prática a terapia da vassoura zen-budista.
— … vai tomar banho ou quer mais umas vassouradas para relaxar?
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De tanto navegar no remanso, Donato Carnaúba desaprendeu a remar em águas plácidas.
De tanto ouvir abusos da companheira, Donato desaprendeu a colher as carícias do amor.
De tanto gastar o salário antes do fim do mês, Donato Carnaúba perdeu a fé na existência da poupança.
Quando Donato compareceu ao psiquiatra, este vaticinou:
— Humm… O hábito fez de você um caso perdido.
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Toda manhã, logo cedo, Palmácio das Neves abria o dicionário em busca de um novo vocábulo.
— Bom dia, meu dileto vizinho energúmeno. Que a manhã lhe seja dantesca!
No outro dia, antes de cruzar a rua:
— Bons fluidos, cara vizinha fornicadora. Cuidado com o excesso de sol e de falo!
Certa tarde, ao retornar do trabalho, a vizinhança esperava-o à porta de casa:
— Boa tarde, infausto e inominável vizinho. Prepara o teu lombo para uma inopinada e homérica sova.
O vizinho recém-chegado trouxera na bagagem um dicionário.
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Mantenha a calma na pressa da lida; caso não, você tombará quando for subir no cavalo selado que se lhe apresente um dia.
As tiranias criam servidão até no gosto.
(Edmond et Jules de Goncourt, em Diário: memórias da vida literária)
*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.