A propósito da arte maior de Vicente Vitoriano

Por Márcio de Lima Dantas

 

Na multidão de palavras não falta transgressão,
mas o que modera os seus lábios é prudente.
Provérbios, 10:18-19

 

 

1.
Saibam quantos este público ensaio virem, que tudo aqui que vai escrito, compete
à minha responsabilidade, em gênero e número, como o próprio nome já informa, trata-se de um ensaio (Adorno, O ensaio como forma). Muito bem, vamos. Creio que o
arquiteto, professor e artista plástico Vicente Vitoriano (Mossoró, 1954) destaca-se, se
não como o nosso maior artista visual vivo, contudo não podemos deixar de proclamá-lo
como um dos mais abalizados, considerando não apenas uma observação superficial. Há
que dar uma olhada, tanto no que concerne à quantidade quanto na insigne qualidade,
visto que sua assinatura circunscreve o fato de ter palmilhado outras sendas do amplo
perímetro que a arte risca na história da nossa civilização.
O professor do Departamento de Artes da UFRN, cantor de uma banda com
excelente repertório e grande magnificência de ajuntar música e teatro (Gato lúdico),
poeta de um lirismo bastante singular, o artista conseguiu mais do que parecer, ser de um
modo que deixou a banda numa espécie de solidão, no que diz respeito a não fundar um
mito em pósteros grupos, dando outra solução a uma linha de continuidade fundada pela
banda.
Tenho plena convicção disso. Detendo uma vasta história no mundo das artes,
adentrou e foi capaz de manusear com maestria todos os estilos com os quais trabalhou.
Iniciou suas atividades no ateliê do saudoso Joseph Boulier, frequentado por artistas e
intelectuais, inclusive o pintor Varela. Também andava na casa da grande pintora Marieta
Lima, pessoa generosa acolhedora dos jovens artistas.
Cedo o talento revelou-se. Não havia outro caminho. Fora escolhido e sagrado
pelas Musas para dar contorno às formas que revolviam-se no precoce rapaz, bulindo na
sua alma desassossegada uma energia outra que só alguns trazem consigo e não sossegam enquanto não depositar nas aras de Érato (poesia lírica), Calíope (poesia narrativa,
retórica e eloquência) e Euterpe (música). Ao que parece, as Musas ficaram felizes com
a escolha do jovem aprendiz, pois fizeram crescer o talento e a capacidade de dominar a
Arte em seus tantos meandros, carrascos e claros lagos.
Tanto é que formou-se arquiteto, vindo a ser professor de Artes na Universidade
Federal do Rio Grande do Norte. Reconhecido por seu grande conhecimento da História
das Artes, consegue unir teoria e prática num só amálgama. Tendo plena consciência do
que elabora e compreendendo em que lugar se insere aquilo que produz, fenômeno
bastante complexo, pois, via de regra, nem sempre os artistas detêm a consciência das
tradições às quais se vinculam, estilo histórico no qual se inserem ou domínio consciente
e os efeitos causados pelas técnicas manuseadas. Porém, ele não é uma exceção.
Com efeito, quase sempre são autodidatas, intuitivos, ou não se importam muito
com a dimensão mais teórica ou analítica do que produzem. Não quero dizer que isso seja
imprescindível em arte, mas a consciência lúcida e a teoria do desenho e da pintura do
fazer artístico valoriza mais o produto advindo das mãos do artista.
Longe de suceder tal alheamento em Vicente Vitoriano. Sabe o exato motivo de
efeitos causados por pinceladas, texturas, cores, sombreamento e planos. Revelando uma
arte com uma grande dimensão cerebral, sem perder a enorme sensibilidade que possui.
O artista iniciou seus trabalhos com movimentos advindos do Modernismo, tais como a
colagem cubista, a vanguarda russa e o Dadaísmo, tendo elaborado preciosos trabalhos
com influências dessas correntes. Depois viria a trabalhar com a Pop Art e a Optical Art.
Bastante curioso é observar a evolução interna das formas na sua obra. Partindo
de algo mais sofisticado, as vanguardas modernistas, hoje sua obra é eivada pelo traço
simples e elegante. Num despojamento estilístico minimalista que causa um
apascentamento do olhar do espectador. Permitam-me, aqui, estabelecer uma conexão
com uma poeta portuguesa, Fiama Hasse Pais Brandão (1938-2007). Seu primeiro livro
reveste-se de um breve hermetismo (Morfismos, in Poesia 61). Logo em seguida, opta por
uma poesia metalinguística, deixando de manusear o único procedimento poético que
restara quando dos movimentos de vanguarda do início do século: o ritmo. Considerando
assim, aproximou a poesia da prosa, como João Cabral de Melo Neto o fez, ao usar o
metro octossilábico de tradição espanhola e a rima toante. Fiama prefere os cortes
abruptos e naturais da frase musical vinculadas à fala (Cenas vivas). Quiçá seja Fiama
Hasse Pais Brandão a maior escritora (poesia, romance, teatro, novela) portuguesa depois
de Fernando Pessoa. Alguém duvida?

 

 

2.
É capaz de dominar uma multiplicidade de técnicas, que o permitem se lançar em
experimentos vários, indo do figurativo ao abstrato. Senhor dominante dos seus meios de
expressão, valida de forma consciente o que deseja retratar. Nas últimas séries, o artista
consegue atingir uma coisa que é bastante difícil em arte: referir uma mensagem (ao que
parece, apelando à imagem para sua dimensão de significante), – pictural por meio de um
minimalismo que se compraz em apresentar e não conduzir a uma qualquer interpretação
ou configurando uma metáfora com os elementos contidos no suporte.
Há uma simplicidade e um frescor natural de quem faz a pintura voltar-se sobre
possibilidades de não mais querer buscar retratar a realidade e seu entorno de
informações. Queda-se de portas abertas sobre o manuseio de formas observadas no seu
entorno, pode ser que haja uma ou outra estilização, mas, por exemplo, a série de pessoas
flanando nos jardins ou folhas palmadas, tendo todos os folíolos surgindo de um mesmo
pecíolo, com cinco limbos, parece ser a série que mais logrou êxito, nesse intuito de um
trabalho de arte visual voltar-se sobre o conjunto de procedimentos manuseados para
conseguir dizer, se me permitem assim falar, de uma metáfora desprovida da sua
dimensão de significado, mas compraz-se com o significante. Há nessa série, bem como
em outras, o predomínio da linha curva inspirado na natureza/botânica, haja vista aslinhas
curvas irregulares e sem simetria.
Eterno experimentalista, seus trabalhos não deixam a entender que é fruto de uma
“inspiração”, mas de um caráter deliberado que o faz edificar aquilo que busca
conscientemente fazer, ou seja, o efeito pictórico que de caso pensado habitou primeiro o
nível de consciência cerebral, de refletir, de mensurar, de imaginar o efeito das cores ou
do desenho que, por fim, será plasmado no suporte.
Sua arte é extremamente sofisticada, sendo mais um artista voltado para os que
entendem de arte ou trabalham com ela, visto deter dicções em algumas séries feitas com
esmero e extrema diligência, de uma espécie de pessoa caprichosa, no bom sentido,
apreciando a si próprio. Talvez seja esse o motivo pelo qual há sempre um silêncio e uma
espécie de estaticidade nos seus trabalhos. Silêncio que sugere ser o do próprio artista que
se compraz com seu fazer, num saudável narcisismo de quem apreciou o que edificou.
Como quem escreve um poema e sente aquela espécie de orgulho de ter expressado algo
que jazia no seu íntimo.

A ausência de uma dicção que contorne seu trabalho numa assinatura facilmente
identificável como da sua autoria, ou seja, “um estilo Vicente Vitoriano”, enriquece o
conjunto da sua obra numa variedade de formas e cromatismos diversos, permitindo uma
liberdade de expressão que o faz desenhar requintados perfis de “Núbios” ou espécies de
formas de tentar, à guisa de geometrismos com linhas curvas, evocando formas da
natureza.
Essa variedade de formas e cores parece querer dizer de um espírito inquieto, que
não se entusiasma muito com as formas existentes no mundo, que quer incorporar
realidades outras, a partir do que existe no seu íntimo, e como que se obriga a repensar o
entorno que contempla. Como se fosse obrigação face a si de modelar por meio de
materiais vários o que pulsa informe no espírito. Há de admitir que seus trabalhos tornam
o mundo mais belo. Sobretudo as séries nas quais revela seu domínio da cor e dos
eventuais contrastes provocados, causando o triunfo da cor sobre o desenho. Mesmo
sabendo que em outros trabalhos o desenho vem a sobressair. Essa maestria permite,
como já disse, imprimir a seu trabalho múltiplas formas de pensar a arte, tornando-a mais
uma forma de conhecer a realidade, quer seja exterior ou interior. Dessa forma, seu
trabalho se reveste de um caráter metalinguístico muito próprio, pois a Arte tem
consciência de si, fala de si mesma, não procurando copiar o mundo.
Mas sempre me passa a impressão, sua obra, de uma espécie de solidão que faz
saber de uma alma madura e rica de reflexões acerca da existência. Reitera a solidão
humana por meio de personagens circunspectos ou eivados de um hieratismo que fixa
planos nos quais a palavra como que perdeu seu poder de comunicar. O que o silêncio
quer falar compete ao espectador inferir ou imaginar por meio da sintaxe dos seus olhos
que contemplam.

 

3.
Evocarei aqui algumas de suas séries para demonstrar o que discorri teoricamente
acima.
O tríptico “Sobre arte moderna – Baudelaire, Greenberg e Danto” (2008),
homenageia três grandes artistas por meio do uso de dois códigos: o retrato e a palavra.
Conseguiu um belo efeito de evidenciar o rosto dos três artistas com o fundo de textos. A
economia de meios, numa grande simplicidade, enfatiza o semblante das personagens,
chamando atenção para olhares que compreenderam o mundo por outro viés, como
Baudelaire, considerado por muitos como vate do que viria com as levas de vanguardas
do Modernismo.
A série “artisticidade” (2009) é um dos mais bem-acabados e belos trabalhos que
o artista já produziu. Por meio da mescla de vários materiais pictóricos, e de uma
perspectiva bastante clássica, conseguiu um colorido muito peculiar, no qual parece que
a cor quer suplantar o desenho, sobretudo nos arranjos florais, com exuberantes planos
verdes de robustas árvores. Retorno ao silêncio. Criaturas ao lado das outras, mas
separadas por um silêncio que não parece deter uma eloquência implícita, mas deixa os
seres como que quedados em suas próprias quietudes, num suave descanso de quem sabe
uma indiferença por algo que passou.
Os “Novos florais” (2016) são de uma composição bastante inusitada. Figuras
solitárias em puro negro, com rostos brancos sem contornos, aproximam-se do
espectador, mormente pelo fato de estarem sobre um vermelho puro de tanta luz,
circundadas por círculos coloridos. Reaparece o ser sozinho na paisagem. Sem face e
revestida de um luto que não se parece com o sofrimento, mas se assemelha ao preto
como cor.
O díptico “Arlequins” (2017) expressa uma sobriedade facial que vai ao encontro
do geometrismo do plano alaranjado e do verde e azul das vestimentas da personagem. O
artista apropriou-se da tradicional roupa do arlequim e criativamente compôs as telas. O
geometrismo dos ângulos retos ousou fazer uma bela composição com as linhas curvas
dos perfis dos Arlequins.

A exposição “Os fins da linha” procura justapor uma série de quadrados que são
originados a partir da intersecção de linhas cruzando a horizontalidade e a verticalidade,
conseguindo um admirável efeito plástico através de uma simplicidade de figuras
geométricas e cores várias. Aqui não existe a presença da figura humana, busca-se tão somente o manuseio de planos, cuja virtuosidade sobressai
A série de pessoas em jardins, a passear tranquilamente, ou sentadas em espaços
arrodeados de uma natureza exuberante, com canteiros de flores, mas procurando
ressaltar que é fruto de uma determinação humana, também renova a presença de um
persistente silêncio por meio de como os corpos estão dispostos, óculos escuros ou
ausentes de olhos. Até parece que as figuras estão quedadas ali em busca de um locus
amenus, sendo que não conseguiram deixar lá de onde vieram em busca de um plácido
lugar onde pudessem sossegar seus espíritos. Quero dizer de um silêncio que mais
incomoda do que redime, o que chamam de “solidão a dois”

Enfim, podemos pensar numa invariante estrutural na vasta e múltipla obra de
Vicente Vitoriano: a solidão e suas diversas nuances de silêncios que habitam seus
trabalhos. Não são seres errantes, claro, mas criaturas quedadas numa silente dignidade e
compostura, que faz saber da necessidade de uma resiliência face às vicissitudes do
destino ou uma necessidade ontológica para se recompor dos embates nas quais as Parcas
imprimem a labuta de existir?
4.
Na verdade, o que perpassa essasséries dos últimos tempos do artista, é uma opção
sem nenhum pudor da dimensão forma que sempre se pronunciou como o cerne e a
identidade da obra de arte. Assim, podemos pensar que as séries são exercícios de um
artista demonstrando sua habilidade e virtuosismo por ser senhor das diversas técnicas
que domina. Em síntese, há uma naturalidade no que faz, como se fossem ensaios e não
obras de arte premeditadas em esboços vários. O ensaio é como se fosse algo que se
compraz em apenas apresentar um ponto de vista, não querendo ser a palavra última
acerca de uma obra literária ou artística (Adorno: o ensaio como forma). As bailarinas
ensaiam horas e horas, para se apresentarem em um espetáculo.
Ah, deixe eu dizer outra coisa! O ensaio, como o fez Walter Benjamim (Obras
escolhidas: magia e técnica, arte e política), não faz uso de cacoetes tediosos da
academia, cavalga permitindo-se uma liberdade como dantes não havia, de extensas
citações ou vastas bibliografias. Apresenta um ângulo ou recortes do objeto que vem a
tratar. Não espanta o fato de muito do que escreveu não ter grande extensão, regendo-se
por meio de paráfrases ou conhecimentos difusos do corpus. Repito: não há citações,
como se fora uma ânsia de provar para o leitor o que discorre sobre isso ou aquilo. O
implícito diz ao leitor do imprescindível de colaborar com conhecimentos da área na qual
se encontra o ensaio.
Dessarte, o ensaio conforma-se como Hermenêutica, interpretando e explicando
semióticas, seja qual for o jeito como está disposta. A grande diferença com relação aos
chamados textos acadêmicos (falo das universidades) é oferecer ao leitor uma aragem
cuja leveza redunda em um grande prazer de um aprendizado novo ou, quem sabe, ele já
fazia ideia ou aquilo de se trata já tinha causado estranhamento. Eis o quanto é bom ter a
humildade de aprender e ensinar.
Sem nenhum pudor, refrata o conteúdo, a dimensão e significado, detendo-se
sobre a forma pela forma, buscando alcançar as inúmeras possibilidades de se compor ou

engendrar certos elementos que na realidade não passam de puro pretexto para se
discorrer acerca de outra coisa. Como podemos ver, essa é uma definição de uma
metáfora.
5.
A série de rostos de homens em idade jovem expressa um domínio da técnica da
aquarela capaz de circundar semblantes eivados de beleza e sensualidade, imperando um
frescor em la flor de la vida, sem anúncios e preocupações da inexorável certeza inerente
à condição humana. Porque o tempo passa, e tudo que fora edificado, seja de argamassa
e tijolos ou o ataviar-se de corpos e modos de fala e sedução, sucumbe sem ouvir os
prantos de alguns e a resignação de outros.
Esse conluio de Cronos com as Parcas é uma boda tão certa quanto o nascer do
sol em determinadas regiões do globo, por isso de usufruir enquanto os ventos do charme,
da beleza, do estilo, encontram-se em harmonia, perfazendo um conjunto no qual o corpo
lança suas cartas nos jogos dos relacionamentos interpessoais. Se o indivíduo detém uma
presença regida pelo it, algo que assoma de dentro para fora, em um feitio cujas partes
não usurpam o belo, mas é todo, a partir de uma reunião de elementos, deixando os
próximos intrigados por um desenho que nada tem de tíbio, mas faz uso do todo para
aportar uma beleza não estereotipada ou aquela imposta pelas classes dominantes.
De fato, é o que sucede com os torsos pintados com aquarela por Vicente
Vitoriano. Os vários rostos, com suas ímpares expressões nos conduzem a compreender
o belo por meio de outro ponto de vista, por meio de um outro paradigma que se encontra
mesclado aos aglomerados de jovens. Ao que parece, para que não existam dúvidas, o
domínio da aquarela pelo artista se comprova no majestoso Bagoas (foi um eunuco persa
que viveu no séc. IV a.C., cortesão de Dario III e depois de Alexandre, o Grande), tendo
sido apreendido, aqui no referido desenho, de corpo inteiro, diferente dos outros jovens
no qual aparecem apenas os torsos.
Só queria proclamar uma coisa a respeito da idade, já que falamos tanto de
juventude, um dos segmentos da cronologia do humano, e ninguém pode ter a ousadia de
querer retardar, pois quando isso acontece, por meio de mecanismos artificiais, torna-se
engraçado ou ridículo. Há de compreender, há de refletir, há de sobretudo aceitar sem
pejo ou travos amaros nos olhos ou na boca. O que chamamos idade só aparentemente é
um instrumento que se faz administrar de maneira aritmética (1,2,3, 4…). Ocorre na
verdade uma matemática geométrica (2,4,6,8…)

Ora, isso acaba por nos obrigar a aceitar a passagem do tempo no corpo como uma
espécie de atualização, e nunca fazer aniversário todos os anos. Em suma, temos 40 anos,
daqui a pouco chega os 60 (não me lembro direito quando tinha 50 anos), com mudanças
no metabolismo ou algumas enfermidades. Apenas alguns poucos, cujo charme já veio
consigo, permanecem intactos, no físico ou o talento não esgota, insiste em se expressar.
Caso a idade impeça determinado movimento ou a memória fadiga, doando tãosomente circunscrições onde se pode atuar, as ordens interiores conclamam o
chamamento de manifestar-se mesmo com as limitações outorgadas pelo tempo e sua
busca de a tudo devorar. Dessarte, alguns são teimosos e anseiam pelo dom da fortaleza
de espírito, evocando determinadas musas responsáveis consoante o que ainda lateja,
como se fora espécie de maldição (Baudelaire). Tratando disso, acabei por lembrar esta
citação de uma nossa escritora: “Dedico-me à cor rubra muito escarlate como o meu
sangue de homem em plena idade e, portanto, dedico-me a meu sangue”. Dedicatória do
autor (na verdade, Clarice Lispector, In: A hora da estrela).

 

6.
Enfim, Vicente Vitoriano parece ter manuseado a técnica da aquarela como
promessa, dúvida, certeza ou exame ao se apalpar, culminando numa prova dos nove de
que estava muito além das suas capacidades, pois não se restringiu a um significado, mas
adentrou por tantas e muitas significâncias. E o que aparenta serem exercícios
circunstanciais, na verdade, é muito mais um virtuoso satisfeito consigo mesmo.
Basta ver os rostos de homens mirando firme para quem retrata, sóbrios,
comedidos, anchos de uma presença no mundo. Também sai para espaços abertos, como
as ruas com prédios e automóveis e transeuntes, captando a dinâmica de um naco de uma
cidade. E há a beleza de delicadas flores em sutis transparências, algumas lançando tons
e formas, beirando o abstracionismo. Naturezas mortas em vasos de uma transparência
difícil de lograr êxito com aquarela, uma técnica baseada em pigmentos diluídos em água
sobre papel com elevada gramagem, exigindo do artista determinação e rapidez no traço.
O que quero dizer é dos apartados de indulgências ou possibilidade de corrigir ou
improvisar quando ocorre algo que não estava previsto.
Revela-se um apreço por elementos da natureza, cuja compleição funda-se por
meio das curvas, haja vista a profusão de trabalhos na qual constata-se galhos com
delicadas folhas e frutos. Muitas vezes podemos observar uma estilização do mundo
natural, apenas lembrando isso ou aquilo: uma flor? Uma planta? Um fruto? O que
importa é a mestria do autor, alçando brios no figurativo ou o abstrato.
As cenas rurais, quiçá, junto com os vasos com buquês de flores, vêm a ser as
aquarelas de melhor feitio. A perspectiva foi alcançada por meio de tons em verde,
expondo rios e vegetação ciliar suntuosa, de rios que serpenteiam em busca de destinos.
Outras cenas rurais mostram homens pescando em pequenos barcos ou homens
conduzindo uma carroça puxada por um boi. Por vezes, as águas estão paradas, refletindo
a luxuriante mata emoldurando a paisagem. As marinhas são pintadas em delicados tons
de azul. Ainda lembrar que o artista manuseia outras técnicas, fazendo uso do grafite,
nanquim, guache e marcadores.
7.
Edifica o significante como um lugar no qual as séries organizam-se tendo em
vista deterem os mesmos paradigmas, e em um lance de consciência, ou não, configuram
sintagmas, justapondo o conjunto em uma mesma metáfora (Ferdinand de Saussure,
paráfrases). Assim como se fosse uma coisa no lugar da outra. Qual a definição de uma
metáfora que não aproximar duas coisas ou campos semânticos, sendo que os dois
elementos trazidos para a comparação apresentam-se como emanados do arbítrio de uma
subjetividade?
Para exemplificar, podemos citar o pintor Salvador Dalí como um artista que
talvez tenha ousado achegar a uma (im)possível metáfora pura, embora saibamos da não
existência de metáforas que não sejam também metonímicas, ou seja, não há pureza nas
duas formas de funcionamento da linguagem: Metáfora e Metonímia, ambas contêm um
tanto da outra. Bem claro, não são simplesmente figuras de linguagem, como nos fazem
crer os livros do ensino médio, mas estruturas do pensamento (Roman Jakobson), como
se fossem estelas fincadas na mente do Homo Sapiens, e nunca rígidas, mas detentoras de
uma maleabilidade que proporciona um vocabulário que nos é oferecido em salvas,
contudo, há de compreender que existem locas e lados para ordenar o que existe nas
bandejas do destino, vindo determinados indivíduos destoarem da maioria: são os
cientistas, artistas, filósofos, poetas.
8.
O certo é que o nosso artista visual Vicente Vitoriano, legítimo proponente a
ocupar as paragens cujos domínios pertenceram a Dorian Gray ou Newton Navarro, numa
justa medida de quem foi farto, tanto no ecletismo quanto em quantidade e qualidade, se
faz mister reconhecer tal premência diante dos conjuntos e subconjuntos estéticos no
estado do Rio Grande do Norte. Faz-se mister asseverar sua ampla e diversa contribuição
às nossas artes, sendo o conjunto da sua obra de muitas facetas uma farta seara plena de
espigas maduras, competindo aos pósteros segar e elaborar soluções de continuidade.
Creio que poucos foram tão profícuos, como já disse, em quantidade e qualidade
estética. A História das Artes, no futuro, há de soprar seu nome como um dos mais
importantes produtores de arte. Podemos encerrar nosso ensaio com uma citação oriunda
da Bíblia, que fala de um Deus arrependido de ter criado o mundo. Com certeza, não se
refere a Vicente Vitoriano. “E disse o Senhor: Destruirei, de sobre a face da terra, o
homem que criei, desde o homem até o animal, até ao réptil e até as aves dos céus; porque
me arrependo de os haver criado” (Gênesis, 6:7)

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