Assis Costa e as muitas maneiras de dizer a realidade – Por Marcio de Lima Dantas
Por Márcio de Lima Dantas
Professor de Literatura Portuguesa da UFRN
marciomartedantas@gmail.com
O silêncio em teu seio é prata
a sofrer o lavor
minucioso do tempo.
Henriqueta Lisboa
1.
Assis Costa (Currais Novos, 01.03.1977) teve como mestre o pintor João Antônio.
Esses estudos versavam sobre o desenho, a pintura a óleo, a pintura acrílica e mais outras
técnicas que, posteriormente, vieram se somar a quem, por si mesmo, conseguia através
do que pulsava no seu interior: a arte de qualidade. Malgrado seus estudos de arte
acadêmica, o que indigitam como clássica, não conseguiu desenvolver uma exacerbada
paixão pelo estilo que mais se avizinha da realidade, ao pintar a dinâmica onde habitamos
e somos capazes de suportar as marcas do tempo nas rodagens da vida, sempre em sua
pressa, sempre pulsando ou se dando a posar em retratos imotos, como se fossem
personagens, como se fossem naturezas-mortas, paisagens exuberantes ou aglomeração
de pessoas.
Enfim, o desenho acadêmico é bastante dúctil, no sentido de que detém uma
flexibilidade capaz de alcançar as diversas formas de retratação, tanto no que diz respeito
ao que a tradição herdou e perdurou (retratar figuras humanas de maneira realista), quanto
no que concerne às formas válidas da contemporaneidade (Cubismo). O próprio artista
admite seu gosto pelo Impressionismo e pelo Cubismo, ambos presentes na sua obra.
Porém, o mito que circunda o artista — seu mito fundante —, encontra, como se
fosse uma invariante, hiatos ou nacos do cotidiano, preenchidos por festas populares ou
mesmo individualidades. As telas que expressam retalhos do cotidiano ou formas de viver
e de se comportar, caracterizam-se quase sempre por desenvolver um traço sutil, íntegro,
de vera. É aqui que ele se distancia da arte naïf, na qual as pinceladas não detêm uma
consciência de quem estudou com afinco o desenho. Mesmo vistas a distância, ainda
perdura essa preocupação de expor com acuidade toda a dinâmica do evento, da festa, da
feira.
2.
Gostaria de, aqui, fazer uma pausa para discorrer acerca de duas telas de uma
beleza ímpar. Assim, também, o artista confessou seu apreço pelo Impressionismo.
(Passeio no Totoró). O traço lembra fortemente as pinceladas do estilo histórico
Impressionismo. A cor verde foi distribuída no primeiro plano, o da modesta residência
rural, com um frescor que passa segurança à mulher de sombrinha com uma criança. Ao
que parece, vem visitar essa casa logo à sua frente. O formato é um triângulo equilátero,
ascendendo até o cume da pequena serra. Inclusive, a vegetação é mais escura, sugerindo
a presença de árvores e arbustos com mais tempo de crescimento.
O enquadramento do recorte de uma paisagem expressa uma simplicidade cujo
êxito nos chega como uma expressividade custosa de se conseguir. Tudo parece claro,
não sugere um enigma ou algo de árdua interpretação. É um trabalho artístico que se
apresenta de maneira nada intricada, pois se rege através de elementos familiares
encontrados nas vidas simples. O que agrega para ousar uma singularidade são as
pinceladas evocadoras de Monet, por exemplo.
3.
Em decorrência de o artista ter feito estudos sistemáticos das tradições clássicas
da arte ocidental, tais como o desenho acadêmico e a geometria, acabou por ancorar sua
obra em uma multifária presença de meios de expressão. Haja vista, como podemos
identificar no conjunto das múltiplas séries em vários estilos que não apenas pertencem à
História da Arte, mas, sobretudo permanecem com um forte vigor conduzindo alguns
artistas visuais a realizar uma empreitada que jaz como uma solução de continuidade.
Quero dizer de uma mescla trazendo, por exemplo, uma vanguarda do século XX,
com suas propostas de diferenciação do usual na pintura do Realismo (século XIX), mas
não permanece nisso. Seria démodé, ultrapassado. O interessante é demonstrar valia
quando se é capaz de plasmar uma obra de arte por meio de uma síntese entre o que
concerne a um período e usar superposições inerentes à contemporaneidade, ou seja,
compreender o passado como integrante, interagindo com as formas do nosso Espírito da
Época (nossa forma de sentir, representar, se comportar ou o viés de onde colocar o afeto).
Sendo assim, necessário se faz uma fusão capaz de gerar um terceiro — deixa de
ser apenas um — bem mais condizente com o que somos no atual tempo. A arte reflete
seu tempo. Nunca foi diferente. Existem os “poetas fortes” (Harold Bloom), aqueles que
a posteridade terá como referência de, se não superar, pelo menos acrescenta algo ao
original na feitura do seu poema, dando continuidade à evolução de formas que
caracteriza a lógica das transmutações da arte em cada época.
Para retermos um exemplo bem nosso, podemos evocar a Poesia Concreta, surgida
no Brasil na década de 50. Estávamos no meio do século, duas grandes guerras, o avanço
tecnológico fazia saber que era irreversível; houve um avanço do analógico (visual) sobre
o digital. As formas de afeto tomaram outros rumos, o amor romântico arrefeceu,
contrapondo maneiras mais objetivas e calcadas na razão ao se relacionar.
Essa totalidade de mudanças veio com fúria e grande pressa no seu avanço de
instaurar uma nova ordem, uma nova maneira de enxergar o que nos circunda. Em suma,
eis as razões da nova poesia que surgiu. Dificilmente um poeta hoje em dia não faz uso
do branco da página como suporte a mais, na construção do poema.
E mesmo há uma corrente de poesias que nem sempre faz uso da letra do alfabeto
(digital), bandeando-se para a figura, a colagem (analógico), lançando-se como proposta
ao leitor para que venha e participe da construção do poema, que não seja imoto, inerte,
mas inclua-se no fazer e acrescente eventuais sentidos. A cidade do Natal (1960)
consagrou-se como um dos mitos fundantes do Poema Processo, capitaneado por Falves
Silva, J. Medeiros, Anchieta Fernandes, Moacy Cirne, Dailor Varela, Bianor Paulino,
Avelino Araújo etc.
O Poema Processo é uma espécie de lugar para onde toda uma sorte vetores
estéticos confluíram, fundindo linguagens que hesitam entre a Semiótica, a Pintura, o
Desenho, a Colagem, a Linguística e tudo o que vigora como possibilidade de arte na
contemporaneidade.
Ainda não encerrei. Retomando o crítico americano Harold Bloom, há um livro
chamado A angústia da influência, no qual discorre acerca de como alguns poetas
escrevem uma obra de grande envergadura estética, chantando sua marca de tal monta
que se inscreve como antes e depois dele. Assim, os poetas pósteros sentirão a “angústia
da influência”, causando esse fenômeno em todos que tiverem acesso aos melhores da
sua época. Para alguns, que definem a importância daquele, resta não imitar, mas buscar
alguma vereda até então não caminhada.
Com relação a Fernando Pessoa, temos uma poeta portuguesa como Fiama Hasse
Pais Brandão (15.07.1938 – 19.01.2007), que conseguiu ser bastante diferente daquele,
escrevendo sem fazer uso do ritmo que Pessoa manuseou em tudo que escreveu. Nesse
sentido, abriu uma vereda original e bastante diferente daquele que nenhum poeta
conseguiu superar.
4.
Vejamos com mais vagar uma outra série bastante excepcional na gramática plural
do artista. Há um só tema: os santos da Igreja Católica. Tendo em vista as telas retratadas
com São Francisco, destaca-se uma com somente o nome do orago. O que desponta como
uma obra de grande beleza plástica é quase o absoluto monocromatismo do azul. E que
se encontra no solo, no capim baixo que vai adentrando e indo esbarrar nas serranias ao
longe, para depois chegar no firmamento. Tão-somente um cão marrom e uma pomba
branca refogem à exuberância dessas nuances azuis.
Mas devo dizer que a prodigalidade do azul está no hábito do monge, causando
um estranhamento, na medida que os fransciscanos vestem marrom. Contudo, nada
impede de fruirmos essa prodigalidade do azul, proclamando para compreender que aqui
temos uma obra de arte e não somente um santo, haja vista a empatia que o inusitado nos
traz, como se fosse algo espirituoso que logo nos chega à primeira vista.
Da série de quatorze santos, é interessante remarcar o que caracteriza como
integrando esse naipe que a tradição resolveu chamar Sagrado. Está bem à vista o
predomínio da linha curva e a exiguidade dos corpos, cuja estrutura remete às esculturas
encontradas nos arcos das três portas das igrejas góticas. Parece que o caráter esguio de
um corpo magro conduz a um simbolismo no qual o corpo físico, a matéria, tem pouca
importância face ao espírito, lugar onde deve ser trabalhada a busca de uma eventual
santidade, no sentido de deter compaixão pelo próximo e ser limpo da cabeça, assim como
se comportar de uma lídima maneira que nos conduza a sermos mais serenos e sensatos.
Penso que a obra-prima dessa série é a tela “Cristo no Monte das Oliveiras”, não
apenas pelo emaranhado de linhas sinuosas do corpo de Jesus, assim como a posição
horizontal da cabeça, contemplando a lua em minguante, enquadrada em um losango.
Não custa nada lembrar o que o Cristo fazia no Monte das Oliveiras. Teria sido a última
vez que orou de forma dramática, ou seja, antes da Via Crucis, mas também foi onde
ocorreu a “Transfiguração”, ou seja, a ascensão para as alturas.
Vamos nos deter sobre a tela e o que vem a causar seu efeito estético, para além
do que narram os “Evangelhos”. Em arte, isso interessa muito pouco. Devemos nos deter
no que concerne ao significante, não ao tema, ao significado. Retornemos às linhas que
dizem respeito à geometria. Somente o personagem central está configurado por linhas
curvas; suas vestimentas e o corpo volteiam no sofrimento de saber por antecipação do
seu destino.
Com efeito, o contorno do corpo é uma moldura composta por linhas retas,
erguendo-se até um arbusto ao lado, simbolizando a oliveira. A solidão desse homem está
estampada no seu semblante. Um homem de dores. Até a lua reflete um losango. O que
está em evidência é o monocromatismo, com várias nuances; apenas o corpo não
acompanha o sombrio momento de uma versão mítica de um personagem cuja tragédia
está prestes a suceder. É curioso como ampara a si mesmo, sentado no chão com os pés
juntos e a cabeça estranhamente horizontal.
Podem até achar que é capricho de quem escreve, de quem se habituou a
contemplar obras de arte, mas não só isso, também trabalha com um gênero escritural
chamado Ensaio (está presente a hermenêutica, buscando uma profundidade, qual a
metáfora implícita nas imagens presentes, se existe um valor simbólico no que está
sozinho ou justaposto), bem diferente daqueles que escolheram o Artigo, para escrever
sobre um artista.
Quero falar da Opus magnum do acervo do artista visual Assis Costa. Mesmo
sendo difícil, haja vista uma grande quantidade de obras feitas no capricho e em diferentes
técnicas usadas, ademais com maestria operar o uso da cor, das résteas, das sombras,
sejam em figuras muito miúdas e seus detalhes ou em maiores proporções, ao retratar a
figura humana.
5.
(Aconteceu por acaso, enquanto pintava com aquarela e bebia vinho na casa de
um amigo, e por brincadeira disse que iria pintar com vinho, e assim o fiz. O tipo de
vinho? Todos os tipos de tinto, mas já vi na Internet que alguns artistas usam também os
brancos. O papel? Canson para aquarela. A Miolo foi um dos patrocinadores da minha
exposição “A vindima em vinho tinto”, ocorrida no SPA do Vinho, um hotel que fica no
meio do parreiral da Miolo. Depoimento de Assis Costa).
Há duas telas, muito interessantes, que foram pintadas com vinarela, ou seja, com
vinho. Como fica o vinho sobre papel? Não muito diferente do efeito da aquarela, tendo
em vista a possibilidade de observar a delicadeza, ao que parece, do vinho Bordeaux sobre
o papel. Pelo fato de o artista deter o domínio o desenho clássico, as proporções dos dois
trabalhadores macerando com os pés as frutas em plena maturidade são notáveis.
Na verdade, causa um efeito plástico de inimitável beleza. Imagina-se a cadência
dos quatro pés a alternar em um ritmo que lembra uma espécie de dança masculina. A
outra tela é um enquadramento no qual uma imensa videira toma todo o plano à frente,
como pessoas colhendo as uvas maduras das parreiras, e em cujos caminhos seguem
paralelos, com suas uvas maduras sendo colhidas, em direção a um grande edifício, SPA
do Vinho.
6.
Diante de uma coleção de trabalhos minuciosamente elaborados, por uma pessoa
eivada de responsabilidade com o seu ofício, se me perguntassem qual seria a Opus
Magnum, não hesitaria em apontar da série Mulheres, a tela “Lavadeira”. Retirada das
tarefas do dia a dia, das obrigações que as pessoas modestas se sentem na obrigação de
cumprir chova ou faça sol, não há o que reclamar, mas simplesmente se ocupar como
quem obedece, com estoicismo, às tarefas, nesse caso, pertencente às donas de casa.
A tela reproduz uma mulher de costas, lavando roupas, um cachorro sob sua
sombra, com uma bacia de zinco e dois galões da mesma matéria para conduzir água. Um
sol de extrema transparência, como se estivesse a pino, resplende de uma maneira bastante
transparente, tudo torna nítido, luminoso, e com uma transparência que traz seu contorno
e sua cor para o verdadeiro, capaz de mostrar a realidade, deixando suas sombras e seu
zinco, à guisa de espelho, brilhar com intensidade, sobressaindo o todo da paisagem em
seu silêncio de uma mulher em uma tarefa cotidiana.
Não há como se omitir em elogios às capacidades pictóricas de Assis Costa. Falo
no que diz respeito a tudo o que concerne à gramática de plasmar uma tela com seus
necessários elementos, a partir do que se escolheu como referente (tema). Logo de início,
falo dessa tela, observamos a dificuldade de efetuar o desenho debaixo de um límpido sol
que não apenas resplende clareza, mas lança suas interrogações para eventuais perguntas,
quer queira ou não. Um quadro com viés estético, lança alguns vetores em direção às
metáforas ou elementos simbólicos presentes no lastro de formas, cores e alguma
inovação que porventura exista.
Pintar uma tela expressando uma personagem sob um sol causticante, à beira
d’água, no qual tudo encontra-se em um silêncio assertivo, causado por uma luz incapaz
de esconder poucas sombras ou escondendo alguma nuance, acredito que é extremamente
complicado, na medida em que, se fosse um desenho acadêmico, reafirmaria seus
contornos, suas sombras e confiança no fato de alguém ser um bom pintor.
Talvez umas das coisas mais intratáveis na arte da pintura seja lidar com a
transparência. Falo no sentido de captar a luz solar quando se derrama sobre a paisagem,
ou em uma nitidez sobre uma personagem, ancorando-a em uma presença sem
ambiguidade, apenas sendo um causticante sol, nada tendo como referência, tão-somente
deixando a claridade existir em uma placidez luminosa. Diferente de quando ocorrem
naipes de cores em uma paleta que, com suas variações, efetivam contrastes ou adentram
em certas nuances sobre outras ou suas sombras.
Assim sendo, há a responsabilidade de um sol em exercer uma atitude cáustica,
buscando destacar cada objeto individualmente, recolhendo-o na sua funcionalidade. É o
caso da bacia de zinco junto com os dois galões. Um olhar simples se detém sem maiores
questões, mira e compreende o motivo pelo qual está ali. Por sua vez, a mulher se protege
com o boné; à frente a água parada, como a contemplar a roupa quarando.
Há uma coisa ainda a ressaltar: o silêncio que enquadra a mulher, a água e seus
objetos conduzidos pelo trabalho. Tudo conflui para que nada desfaça o ato de lavar roupa
em uma concentração de um sol testemunha dessa bela cena rural. Poucas vezes vi um
artista captar com tal propriedade um sol tão abrasador, tão capaz de permitir a luz, tão
límpido ao marcar com intensidade as cores e as poucas sombras, tão nítido para que os
raios do sol não recebam interferência nenhuma, nem do ar poluído, nem das sombras
impressas pelos edifícios nas cidades.
Essa tela lembra um canto de trabalho interpretado por Clementina de Jesus:
Ensaboa mulata, ensaboa, / Ensaboa, estou ensaboando… Como já disse, Assis Costa é
múltiplo em todos os sentidos, do significante ao significado (a forma e o conteúdo).