Azol: caligrafias de narrativas ancestrais
Habita o tempo, não o espaço.
Inconsútil é sua túnica,
não de ouro ou púrpura tecida:
de matéria mais simples.
Henriqueta Lisboa
1.
Introdução
Azol (Natal, 25.11.1964) tem formação em Cinema e Artes gráficas nos EUA.
Reside em São Paulo há mais de 30 anos. Trabalha quase sempre com acrílica sobre tela
ou papel Hahnemühle Photorag 308g. De temperamento inquieto, não se conforma em
trabalhar tão-somente com pintura. O desassossego na arte sempre vigora em pessoas
dotadas de domínio técnico e consciência reflexiva do que está sendo organizado, como
uma nova série ou o esquecimento momentâneo do que podemos chamar dicção
(permanecer a vida inteira com o mesmo estilo); porém, Azol faz do seu trabalho uma
espécie de laboratório no qual muitos modos de plasmar as expressões artísticas vêm à
luz, tais como: colagem, videoarte, fotografia e escultura
É bom lembrar que ele trabalha sempre com séries, conformadoras de narrativas
implícitas ou explícitas. Mesmo as telas não perdendo sua autonomia de um trabalho à
parte, valendo por si, somente ao justapor o conjunto de trabalhos em sua singularidade,
é que nos chega a totalidade de uma narrativa. Essa maneira de elaborar seus trabalhos,
com forte consciência do que retrata, — sabe muito bem o que está fazendo, outorga à sua
obra em processo uma preciosa fonte de conhecimento.
Quero dizer de duas formas de acesso ao real, ou seja, a arte como conhecimento
de um evento histórico, algo exterior, e também como maneira de acesso às regiões mais
abissais do humano. Sendo assim, a arte vale como forma de conhecimento tanto quanto
o mito, a ciência, a religião. É o que sucede acontecer nessas obsessões de temas que o
artista visual Azol cinge seu trabalho em um movimento de abrir e fechar ciclos, ou seja,
cada série narra uma temática. Para um leitor/espectador com mais agudeza e penetração
de vista, dificilmente deixará passar determinados conteúdos. Em alguns casos, se for
pertencente à região Nordeste, seu talento compreenderá a série como narrativas
tradicionais dessa região.
Mas não é só isso. Chanta sua atividade em forças atávicas que permanecem no
imaginário ou no inconsciente coletivo, adormecidas pelo trotar ansioso e ligeiro de
Cronos. Nada deixando de pé, transmudando o espírito de época com rapidez e impondo
seu jugo em novas formas de ser e de se comportar. O melhor exemplo é nossa época.
Em poucas décadas tudo foi mudado, não apenas o comportamento humano, mas a
própria natureza não ficou impune.
É bom lembrar, como já disse, que cada série compõe uma narrativa, não importa
se apresentada através de fragmentos, ou seja, há que reter um olhar bastante observador
para circunscrever a totalidade de um relato pertencente a um acontecimento ou discorrer
determinada sequência de eventos, que tenham sucedido ou sejam uma narrativa
mitológica. A narrativa contém esses elementos, nem sempre todos: quem sou, onde
estou, o que quero, o que me impede.
Embora adormecida no esquecimento das gerações contemporâneas, vale por
dizer respeito à História de um lugar ou país. Se tudo foi esquecido, não importa, não
compete ao artista defender por meio da arte engajada. Queda-se em continuar edificando
sua arte, em completa ausência da realidade, criando a partir do que se gesta ou lateja nos
meandros de sua psiqué, exorcizando por meio da criação uma ou outra epifania que se
mostra ou que se sente. No caso de Azol, é de deliberada consciência, uma espécie de
matemática interior, que só a ele pertence, configurando suas obras por meio de um saber
o que está fazendo.
(Vejamos como os antigos gregos representavam a Narrativa. As nove musas
inspiravam a criação artística ou científica. A musa Clio, “a que faz famoso”,
“proclamadora”, era a musa da História, da criatividade e da eloquência. Calíope, musa
da poesia épica).
No que diz respeito a Azol, por organizar cada série de maneira monotemática,
narrando uma História submetida à proteção e inspiração da musa Clio, sendo que a
narrativa, qualquer uma que houver, será submetida às linguagens do seu íntimo, manada
em ritmos interiores que buscam plasmar-se em arte. De outra parte, a musa Clio também
jorra seus fluidos, na medida em que é responsável pela retórica ou eloquência. Uma série
busca narrar da melhor maneira uma História, por meio do dom da retórica, da eloquência.
No caso da poesia, é apenas um poema de cunho narrativo (Camões, Os Lusíadas).
Por fim, é bom dizer da importância desse modo de se expressar, sabendo como
se organiza determinada narrativa, com sua forma de ser, através de um feitio abstrato ou
um modo figurativo. Em algumas séries as formas estão dispostas de maneira
fragmentada, todavia, há que se deter com mais atenção, para que as partes venham a ser
segmentos de um corpo, conduzindo o leitor/espectador a estabelecer um desenho que se
encontra em retalhos ou partes de um todo, como se fosse um quebra-cabeça. Então, eis
uma figura retratada, como parte de uma história, de uma narrativa.
2.
Sagrado
Embora tenha associado o sagrado à uma Instituição, a Igreja Católica com seus
santos e oragos, creio que sucedeu (talvez), por conta das possibilidades de retratar os
ícones com suas indumentárias ornamentadas e seu caráter hierático, evocando muito
mais a forma de representar das igrejas ortodoxas.
Mesmo sabendo da decadência do rito católico, atualmente pleno de polêmicas e
escândalos, pouco nos importa, visto que nada agrega ou acrescenta à nossa hermenêutica.
O que nos interessa é o referente e sua metodologia até chegar finalmente em uma nova
configuração, em um novo feitio, em uma expressão singular, em uma nova aparência.
Enfim, o que chega para conviver com seus pares detentores também de
configurações inusitadas e plenas de um caráter estético. Acrescentando novas
concepções ao que já detém mais de 2000 mil anos, e parece arfar de cansaço. Bom
lembrar a importância do que se refere aos novos meios ou logrando êxito a partir de
como se elaborou determinadas imagens ditas sagradas, explicitando sua diferença com
o outro. Essa justaposição de artistas visuais, em um convívio estético, lança seus vetores
ao que difere das maneiras como a Igreja Católica fez parecer os santos com seus
atributos.
Penso que essa série nominada Sagrado está muito mais exercitando um convívio
primário com seu antípoda, o Profano. Esse sentido de profano destitui o sagrado, pondo
no lugar, para efeito didático, o Mito, que no nosso tempo, confluiu para livros de
literatura (Ilíada, Odisseia), cinema (Troia), pintura (afrescos nos túmulos do antigo
Egito). Em síntese, para serem interpretados e compreendidos como certos povos
exerciam seus princípios organizacionais, buscando a maneira como sentiam ou agiam,
bem como o funcionamento do intelecto. Desse modo, o mito integra a história de todos
os povos.
É aqui que eu queria chegar: O Mito não desapareceu (“O mito é o nada que é
tudo” – Fernando Pessoa), mas integra o Imaginário, tendo sido sobreposto pelas crenças
e objetos ditos sagrados. Desse modo, o Sagrado ocupa o lugar dos deuses antigos e suas
narrativas (Egito, Grécia, Roma). O Ar do Tempo altera as formas de convivência e
substitui por outras maneiras de representar e sentir. O que fora Mito um dia, não faz mais
sentido, passando a integrar o substrato da civilização ocidental.
Antes de mais nada, algumas determinadas ações, mesmo involuntárias, mas não
destituídas de um sentido assemelhado aos costumes de outrora, como se fosse um rio
subterrâneo, valendo em muitos aspectos, em outros não, pois Cronos devora tudo, e
desintegra os anos e as décadas, emergindo um novo Espírito da Época, com diferentes
modos de ser ou estar. Isso é tangível, basta ser um bom observador. Vejamos, o nosso
tempo é uma fronteira de passagem, haja vista a maneira como ocupamos o tempo, como
nos relacionamos uns com os outros, como nos vestimos ou como ocorre o dinamismo
sensitivo de representar, ou os discursos distribuídos pela mídia e as redes sociais,
determinando valores bastante questionáveis.
A série Sagrado, de Azol caracteriza-se pela franca originalidade em retratar
santos devocionais da Igreja Católica. Via de regra, a figura em evidência recebe um
tratamento de uma moldura, visto estar no centro, embora quase nenhum santo detenha
seu respectivo atributo, como acontece sempre (uma palma, por exemplo), para a
necessária identificação por parte de quem se persigna em uma atitude de fé. Despontam
rosas ou ramagens, coroas ou resplendores, como se fossem muito mais para adornar ou
elencar um jogo de cores, conformando belos contrastes.
Quase todos os retratados detêm uma espécie de moldura ou parede como pano
de fundo, muito mais para causar um efeito pictórico, elaborando um jogo de cores com
os mantos ou auréolas que circundam as cabeças. No geral, há poucos elementos cênicos,
talvez seja justo aí de onde emana a beleza plástica, quero dizer, é resultado de um
minimalismo de cores e elementos contrastantes. Consabido é da dificuldade em
conseguir extrair beleza pictórica de objeto de arte, falo no sentido de que o simples vem
a ser algo muito complexo.
Voltemos ao mito. (Assim a lenda se escorre. / A entrar na realidade / e a fecundála decorre. Fernando Pessoa). Observem que o poeta português fez uma inversão no que
estamos acostumados a raciocinar, pensar ou relatar uma história. Não é a realidade
(História) que adentra pelo discurso mítico, mas é a lenda que suporta o discurso ou
eventos acontecidos, escorrendo para o campo do mito. Sendo assim, podemos
compreender que o Sagrado não é uma verdade eterna; é uma duração de acordo com o
tempo de sobrevivência de povos que fizeram durar seu modus vivendi. Haja vista a
organização mitológica do antigo Egito com sua trindade (Osíris, Isis e Hórus). Ora, a
Igreja Católica detém sua trindade (o Pai, o filho e o Espirito Santo). Isso nos conduz a
refletir sobre todo um ritual e sua pompa da Igreja Católica, com toda uma herança dos
rituais da Roma antiga.
Mudemos o registro, vamos à estética. Azol pintou uma série de santos
pertencentes à Igreja Católica. Quase todos recebem um tratamento de uma moldura, visto
encontrar-se no centro, em uma simetria bilateral. Há uma Nossa Senhora, reconhecida
pelas duas cores da indumentária, o branco e o azul (coincidentemente eram as cores de
Vênus), rodeada por um vermelho sarapintado de manchas negras.
Com efeito, há uma forte evocação do Barroco, empregando seu ethos ornamental,
visto que na retratação não existe nenhum elemento funcional ou utilitário. O que pode
haver de mais belo na paleta de cores? O contraste entre um vermelho escuro e um verdebandeira, nem sempre fácil de justapor e registrar beleza. Mesmo se formos aos ícones da
Igreja Ortodoxa, para cotejar, fica difícil encontrar, pois esta se firma sobre um hieratismo
resplendendo o dourado.
Azol nega o neoplatonismo da inspiração; filia-se, como todo homem sensato, no
campo aristotélico. Suas séries são fruto de uma metodologia previamente estudada;
assim, emprega seus conhecimentos adquiridos com mestres ou escolas.
Bom lembrar do antropólogo francês Gilbert Durand, no seu livro As estruturas
antropológicas do imaginário, no qual também referenda a natureza do mito como uma
invariante do Imaginário. Quer dizer, com essa assertiva, a importância e a vitalidade da
comarca do mito. Ou seja, o mito talvez seja a causa primeira que encontra-se presente
na dinâmica da gramática de uma determinada sociedade, incluindo nas formas de sentir
e raciocinar. É suficiente perceber o quanto nosso tempo ancorou uma nova forma de
pensar e agir. Muito mais está havendo uma mutação civilizacional (Marilena Chauí)
3.
O sertão virou mar
Essa série tem uma história bastante inusitada, visto ter sido inspirada a partir da
contemplação do artista quando de uma visita ao Castelo de Zé dos Montes, localizado
no município de Sítio de Novo, no agreste do Rio Grande do Norte. No meio da
vegetação, sob um lajedo, ergue-se um castelo com fortes resquícios da arquitetura
tradicional bizantina e árabe, bem como da tradição gótica, que por muito tempo
predominou nas igrejas dos sertões adentro (DANTAS, Márcio de Lima. A persistência
das formas góticas na arquitetura religiosa do sertão do Rio Grande do Norte. Revista
Barbante, Natal, ano IV, n. 15, p.72-78, 2015).
É curioso como um militar aposentado, sem maiores contatos com nenhum
castelo, apenas talvez, por meio de fotografias, inventa de erguer um castelo perto da sede
do município, alegando uma solicitação de personagens da Igreja Católica. Creio que só
pode haver uma tentativa de explicar: ungido de forças interiores, com a simbólica do que
chamam sagrado, funcionou como um assinalado, não muito diferente do que sucede com
os artistas ou os cientistas.
Acredito que seja melhor utilizar a noção de Inconsciente Coletivo (Carl Gustav
Jung), na medida em que o construtor, provavelmente, não teve contato com símbolos
relacionados a castelos, sobretudo quando constatamos a presença de uma simbólica com
grande parte dos cômodos voltados verticalmente para o alto (obeliscos, zimbórios), mas
também serve para ambas as explicações, haja vista que todo e qualquer humano possui
essa comarca em suas interiores regiões pelágicas. Ora, todas as culturas possuem os
mesmos mitos, as mesmas respostas às demandas da natureza, a mesma relação com a
agricultura e o pastoreio (período Neolítico), as mesmas práticas religiosas, as mesmas
maneiras de estratificação social. Enfim, por que Zé dos Montes não poderia ser um
selecionado para erguer determinado edifício da arquitetura? Maria do Santíssimo não
tinha a menor consciência do que estava fazendo ao pintar seus galos e ramagens com
flores nos seus desenhos em anilina.
Vejamos como o castelo de Zé dos Montes se organiza. Basicamente foi edificado
em cimento com chapisco e o branco da cal para fazer o contraste das coberturas. Dotado
apenas de duas cores, encontradas nas casas de gente modesta, não deixou de erguer uma
construção eivada de mistério e beleza. Encontramos duas formas básicas: pequenos
nichos retangulares, como se fossem guaritas e essas mesmas formas cilíndricas, todas
com cúpulas no cume.
Nesses pequenos nichos retangulares ou cilíndricos de cimento à vista, coroados
por pequenas cúpulas de pura cal, existem pequenas aberturas simulando arabescos. Essas
pequenas construções estão dispostas em patamares, níveis que ascendem para o alto,
como se fossem socalcos ou curvas de níveis, elevando-se em direção ao firmamento, até
que enfim chegar ao último patamar, nos quais todos são brancos, como se desejasse
ressaltar o coroamento do castelo. Também erguem-se para o alto uma série de pequenos
obeliscos brancos, evocando fortemente o estilo gótico, no qual todo e qualquer elemento
conflui para o alto. Desse modo, obtém-se um efeito estético de beleza e simplicidade,
manuseando poucos elementos, tanto nas cores, quanto no conjunto de formas
geométricas.
Vejamos a mímesis de Azol quando do seu contato com o castelo e suas maneiras
de contemplar o todo e depois as partes. Ora, mímesis não constitui a tão-somente a
retratação de uma coisa pertencente à realidade, do jeito que ela se encontra, como se
fosse uma fotografia em pose tradicional. A mímesis é a transfiguração por meio de um
olhar, ou seja, é necessário que seja submetida ao nosso íntimo (Aristóteles, Poética), à
guisa de um filtro, retendo do objeto externo aquilo que é uma necessidade do sujeito que
constrói a arte. Com efeito, faz-se necessário que um mesmo seja outro, sem deixar de
ser ele. O importante é o fato de o objeto de arte ter passado pelas entranhas de um sujeito,
extraindo o que projeta do objeto contemplado, acrescentando à realidade mais um
elemento, quase sempre digno de ser visto, fruído e despertador de encanto.
Azol deliberou transpor para a tela ou o papel a dimensão não funcional do castelo
em seu ordenamento, optando por selecionar, assim como Zé dos Montes, uma paleta
limitada de cores. Desse modo, a rarefação das cores, e mesmo assim, indecisas, como,
por exemplo, o vermelho justaposto ao ocre, ao amarelo. Há também o branco e o preto
e algumas das suas nuances.
Vejamos como interpretar as construções quando transformadas em arte. Sem uso
da perspectiva, apresenta uma série de desenhos ogivais e outros arcos, sobrepondo como
se fossem simulacros de habitações, porém nada a ver com utilitários, mas com o objetivo
de presentificar estilizações de partes do edifício.
Essa preferência de escolher determinada arrumação do próprio castelo, já fora
encontrada em Zé dos Montes: não é para habitar. Segundo ele, teria sido uma ordem de
Na. Senhora, mas para simplesmente estar, quedado no meio do mundo, soerguendo algo
que muito diz do que se passava no interior desse militar aposentado, como se fosse uma
potência capaz de revitalizar seu espírito, à medida que acrescentava mais uma guarita,
mais uma ogiva, mais uma torre.
Algumas telas, se não tivéssemos conhecimento do Castelo de Sítio Novo,
poderiam serem nominadas como abstracionismo geométrico, mesmo que algumas são
francamente figurativas. Essa ambivalência nos conduz a apreciar ainda mais essas
pinturas, reivindicando no nosso imo uma maior energia de inquirir o que se encontra de
enigma e questões levantadas durante nosso passeio pelos corredores de uma exposição.
Ainda assim, há todo um elenco de triângulos, mormente na cor vermelho-ocre,
justapostos nas ogivas detentoras de outros matizes, contrastando com o preto e o branco.
Até parece que Azol andou cortando em fatias o corpo todo do castelo em corte
transversal. Ou seja, uma tela forjada da geometria que aprece à sua frente, como
característica particular, engendrando um trabalho minucioso e de ordenamento singular.
Essa espécie de recorte não apenas causa esse fenômeno do artista ser ímpar, mas
também imprime um número diferente do dele, havendo dificuldade em distinguir.
Embora não suceda em todas as obras da série, algumas são francamente remetedoras
para o desenho do arcabouço do castelo, no seu ordenamento de ogivas com cúpulas
brancas, guaritas com portas e janelas abertas vazadas, pequenas pirâmides elevando-se
para o firmamento.
Ora, essa disposição de todos os elementos verticais erguerem-se paulatinamente
em direção ao cume, no qual se encontra uma construção totalmente branca, coroando o
castelo, evoca os elementos presentes na arquitetura gótica, estilo histórico que floresceu
na Idade Média e ainda persiste por todo o Nordeste na arquitetura religiosa. Azol
inspirou-se não em retratar ipisis litteris a singular estrutura do castelo, mas como sucede
acontecer, quase sempre, fazendo valer as partes visando evocar o todo.
Dois arcos, via de regra simétricos, elevando-se para se encontrar em um
cruzamento na parte superior. Essas formas arquitetônicas são originadas da arquitetura
bizantina, arquitetura árabe; migrando para o Ocidente, onde veio a atingir seu fastígio na
arte gótica, nas catedrais e mesmo em tudo o que dissesse respeito ao que se verticalizava
em um inconfundível estilo de época do medievo.
O que podemos contemplar nas telas é uma justaposição de pequenas guaritas ou
torres cilíndricas, uma espécie de miniaturas de zimbório em formas ogivais. Sobrepostas
em cores fortes e luminosas, com aberturas que sugerem janelas ou portas (creio que
podemos apontar essa “figura de linguagem”, a Metonímia, como o manuseio da parte
pelo todo, só para exemplificar). Essa estrutura integra todas as línguas, vindo a ser o eixo
Sintagmático, é um eixo horizontal que se organiza pela relação entre os vocábulos que
podem ser combinados para formar frases ou enunciados. Já o eixo Paradigmático é onde
se faz a seleção das escolhas, é o eixo vertical, como se houvesse n possibilidades para
compor uma oração, por exemplo, seria o lugar no qual se encontram os elementos
passíveis de serem substituídos, sem que se perca o sentido. Trazendo aqui para nossa
leitura, os paradigmas seriam os elementos selecionados pelo construtor: arcos ogivais,
guaritas, pirâmides, aberturas nos nichos. Já o eixo sintagmático é a forma, a gramática,
a sintaxe de como ele arrumou os elementos, configurando o todo esplendendo sob o sol).
José Antônio Bento (1932-2020)
Serra da Tapuia, Sítio Novo.
Agreste do Rio Grande do Norte
Segundo Zé dos Montes, a primeira visão de Na Sra, ocorreu quando tinha oito
anos.
4.
Estética do cangaço
O que, em um primeiro momento, parece excesso de informações, não passa de
uma maneira de inscrever elementos referentes à indumentária do cangaceiro, tornando
um entrecruzamento de desenhos, linhas coloridas. Compete ao espectador, aqui nessa
série, diante de um fato estético, conduzir uma leitura portadora da história da região
Nordeste, plena de atavismos referentes à constituição do que ainda subsiste na região
mais antiga do Brasil. Quero dizer de uma subsistência na simbólica do Imaginário. O
que resistiu impregnado nos meandros do íntimo, sem termos consciência, vindo à tona
desde que a vida em sociedade demande nos seus costumes ou nas formas de representar.
Falo do Ar do Tempo, do que predomina nos hábitos de determinada sociedade, e
que confere ao termo uma naturalidade, emergindo em discursos, na imprensa, nas redes
sociais, para determinadas hierarquias sociais acomodarem seu jugo e mando. A bem da
verdade, isso se chama Ideologia, como devemos nos comportar, como devemos ser,
como devemos referendar as necessidades dos que mandam. Por isso referi ao termo
naturalidade, quis dizer que tudo é construído socialmente, tudo são convenções, hábitos,
maneiras de representar, como agir ou pensar.
Desse modo, não podemos esquecer desses fragmentos de uma narrativa histórica,
fazendo parte do que nos concerne como agrupamento social, dizendo-nos de uma
pertença com sua natural memória.
Conquanto isso posto, é salutar sairmos de um regionalismo, para não repetir os
discursos e as obras que têm o Nordeste como referente. O que interessa muito mais é
especularmos acerca da universalidade da obra do artista Azol. Para além desse ponto
geográfico, há de observar sua singularidade e o seu condão, permitindo ser vista e
apreciada em qualquer lugar, país, cidade. Reconhecendo o seu valor como notável
artista, capaz de, a partir de um evento histórico, com tempo e espaço determinado,
elevar-se a um registro de uma obra de arte universal, resultando em empatia diante de
qualquer um, em qualquer lugar, desde que se permita fruir o estético presente em uma
tela ou em uma sua série.
A principal razão de compreender e nomear a obra de Azol como universal, diz
respeito ao fato de como transita em várias mídias da estética, fazendo prevalecer um
talento único manifestado em um domínio detentor de uma gramática estética
incomparável. Logo que aportamos diante de uma sua série, nosso íntimo diz que estamos
diante de algo não familiar, por mais que frequentemos vernissages ou ateliês de artistas.
O talento é único e quase não nos permite cotejar com o que conhecemos, algo bastante
diferente do que ocorre na arte contemporânea.
Outra coisa a lembrar, diante de um bando de artistas plásticos que se comprazem
em repetir o mito do cangaço e do cangaceiro, cujo par Lampião e Maria Bonita é o ícone
maior, repetindo a mesmice em suas telas, com o senso comum referendando esse
discurso primevo e fantasioso. Azol chega e circunscreve esse evento por meio de
metonímias, para, ao final, deter em suas mãos uma bela metáfora (caracteriza-se por não
haver necessidade nenhuma de grau de pertencimento ao se proceder a comparação.
Paradigma é o eixo da seleção. Metonímia é o eixo da combinação). O livre-arbítrio da
nossa imaginação organiza a linguagem visando tornar o discurso com criatividade e
poesia.
Apesar disso, a inventividade foi conquistada através de um recurso expressivo
multifário e heterogêneo. Nem por isso o conjunto dessa série plena de elementos
multifacetados deixou de ser harmônica. A Estética do Cangaço detém um fazer no qual
uma suprema mescla não fez perder a rara beleza de uma obra de arte destoante quando
se trata de uma temática geral apresentada em quase tudo o que tange ao tema.
Raro é encontrar um artista visual manuseando esse tema sem escorregar na
caricatura ou apenas ressaltando o que há de pitoresco, lançando formas tediosas à
posteridade.
Azol ousou apostar na diferença, mantendo tão-somente hiatos, para um eventual
espectador inquirir o que se vela tendo em vista elementos díspares. Se atento, há de
conferir uma integralidade, esquadrinhando o manuseio da luz, uma invariante dessa
série. Lembrando a transparência da luz na maior parte do Nordeste, fazendo com que o
casario, as águas, as reses, a vegetação e os inúmeros perfis de cangaceiros se mostrem
em plenitude, com suas veras cores límpidas, derramando-se sem a interferência ou filtro
do que quer que seja.
O de ter organizado as telas por meio de faltas, lacunas, com alteridade, no sentido
de que nada é completo em se tratando do fenômeno do cangaço, mas apresenta partes
independentes, mesmo tendo consciência de que a presença dos hiatos vem a ser na
totalidade um endereçamento referente a um evento histórico ocorrido no início do século
XX, deixando um rastro que foi ao encontro de um substrato presente no Imaginário da
região Nordeste, lugar onde se resolviam as querelas através de vingança por morte. Havia
também os vaqueiros com suas indumentárias de couro (gibão) e uma religiosidade
popular, bastante híbrida e que nem sempre seguia os preceitos da Igreja Católica.
4.1
Faz-se necessário um olhar mais demorado e perscrutador para conseguir extrair
elementos que se encontram justapostos, tais como pequenas rosáceas, mandalas, cruzes
em série, o fuzil, o mandacaru, o xique-xique, revólveres e cruzes. Essas invariantes
podem aparecer em uma tela ou não, o que vale é sua simbólica, quando as telas são
revisitadas, detendo-se com vagar para extrair uma compreensão tendo em vista a
totalidade.
São poucas as figuras riscadas de corpo inteiro, predominam os rostos de perfil,
sobressaltando os olhos, como se estivessem atentos a algo que fugisse do controle. Esse
comportamento, nas andanças pela caatinga, era o geral, nunca a exceção. Também
podemos encontrar chapéus de couro com estrelas de Salomão ou estrelas de Davi e
mandalas. Tal presença desses signos tinha como função proteger o cangaceiro de
vicissitudes ou de surpresas na errância do meio do mato. São signos cabalísticos de valor
universal. É possível encontrar em todas as religiões esses símbolos, quer seja na
arquitetura ou nos seus rituais, quer seja como parte dos adornos que um indivíduo sempre
está apegado, por razões de fé ou tradições familiares.
Essas presenças distribuídas ao longo do corpo, na verdade, funcionam como
metáforas que dizem respeito a uma característica do cangaço: suas indumentárias ou
adereços, elaborados durante o descanso nos coitos. Os homens também costuravam,
sendo a arte de cerzir ou bordar, atributo de ambos os sexos. Assim sendo, o pintor retirou
talhes dos objetos ou imprimiu uma miniatura, confluindo para uma estética inerente aos
bandoleiros que diferenciavam-se dos lavradores ou dos trajes das gentes citadinas.
Proteger-se através de divindades representadas por adornos era mais do que necessário,
para quem levava uma vida hostil e errante. Ora, é muito curioso, como esses bandos
errantes de homens e mulheres se autorrepresentavam: era um meio de vida como outro
qualquer.
Quero falar da obrigação de haver um domínio sobre o corpo, na medida em que
hesitar ou ser indeciso poderia conduzir à morte. A agilidade no tomar decisões era
imprescindível, fazendo-se deter sempre com a razão somada com a intuição, o
conhecimento dos inimigos, lançando para fora de si a insegurança, a incerteza e a
fortaleza de espírito, como componentes da razão e da capacidade de conhecer por meio
de pressentimentos os coiteiros, as volantes, os lavradores.
Mister se fazia deter uma relação intrínseca com a caatinga e suas possibilidades
oraculares, conduzindo o cangaceiro a selecionar muito ligeiro a vereda certa por onde
deveria caminhar, quando do confronto com as volantes. Tanto é que não havia grande
número de baixas do lado dos bandoleiros, somente no confronto final (houve delação de
onde se encontravam), na Grota de Angico, quando da morte de Lampião, ocorre a
chacina de onze mortos, inclusive o fim de Maria Bonita.
Voltemos a Azol e sua sintaxe pictórica capaz de ousar cingir uma expressão
eivada de múltiplas nuances e suas luzes, capaz de ordenar uma pintura cuja luz pode vir
dos lados, de trás ou mesmo da figura em relevo. A paleta de cores não deixou nada de
fora, toda ela é luxo só, devido à maestria do pintor com seu conhecimento “científico”,
afinal estudou nos EUA, tendo como mestre o pintor e gravador Serge Fingermann. Sua
obra se inscreve como antípoda à monotonia, reinventando suas séries a partir de viagens
que faz.
De outra parte, presentifica e reitera os símbolos das gentes de determinados
lugares, alimentando por meio da imagem e seus signos, nacos de uma constelação
fulgente, fazendo o pintor como mais um indivíduo antenado com imagens que emergem
do seu interior.
Essa prodigalidade de luzes e cores vem ao encontro do locus onde sucede o
fenômeno do cangaço. Andavam pelas veredas ou mesmo fazendo o caminho em uma
vegetação inóspita ou espinhos de plantas cujo atravessar precisava deter uma coragem
sempre presente.
Quero dizer que a luz saída das telas tem como referente um causticante sol com
seu calor e mormaço encontrados na Caatinga, mormente ao adentrar o sertão. Essa luz
fulgente remete ao que se trata como conteúdo (se assim podemos falar didaticamente,
pois arte é forma e não conteúdo). Afinal de contas, o artista vibra seus pincéis e esboços
de desenhos tendo em vista essa forma alternativa de viver, que era o cangaço. Faz valer
e se entrega ao que julga como imanência dessa narrativa.
5.
Fotografias
Outro meio de expressão de Azol é a fotografia. Assim como suas pinturas,
inscreve-se em um registro no qual resguarda a singularidade e a dissonância com relação
aos seus pares que também fazem uso desse meio expressional. Para obter os efeitos de
cor ou contrastes entre os referentes presentes na foto, manuseia algumas técnicas, tais
como Apps Snapseed, Blend Editor e o Dramatic Black and White. Por meio do uso
desses apps, consegue uma beleza inolvidável, quase sempre usando seus mesmos temas:
os lugares inóspitos dos sertões, sendo que essa presença refoge ao lugar-comum, não é
jeito como a mídia representa.
A vegetação quase sempre é assemelhada a um elemento ornamental, no sentido
que faz parte do enquadramento visando obter contrastes, via de regra em um primeiro
plano, formada por garranchos secos elevando-se para o alto, obliterando outras plantas
da caatinga, como o Mandacaru, mais também ocupando o plano mais próximo de quem
mira um animal, um casarão abandonado, uma cerca de madeira e sua cancela, uma cerca
de pedras. Vale lembrar que as cores aparecem quase sempre em uma parte da foto:
vermelho intenso, amarelo, azul, também com o objetivo de ressaltar ou emoldurar o
referente.
Com efeito, em outras fotos o sol encontra-se rarefeito, escondendo-se por trás de
garranchos. Interessante é que a presença humana inexiste, embora sua obra, na maioria,
seja marcada por essa hiância, fazendo valer o que é ermo e sobrevive sem que o humano
necessite marcar sua presença ou pose.
Podemos enumerar algumas experiências fotográficas com o intuito alcançado por
parte do fotógrafo, falo no sentido de uma imanência que não se repetirá, prolongando-se
indefinidamente. Para os gregos, esse momento certo, único ou senso de oportunidade,
era nominado kairos. Mesmo que a foto receba a interferência de programas digitais,
ainda assim não vai se repetir o que foi enquadrado e apresentado como fotografia, não
relegando para nenhum lugar a oportunidade de surpreender, de admirar, de se espantar.
No fundo, a Fotografia é subversiva, não quando aterroriza, perturba ou mesmo
estigmatiza (Roland Barthes, A câmara clara).
Vejamos as fotos. Castelo de Zé dos Montes, reaparece nas fotos, detendo uma
luminosidade amarelada ou fundo azul, de um belo azul real em tom claro. Há também
pequenas capelas encontradas no ermo do sertão adentro, quase sempre à margem das
rodagens, cujas cores sobressaem para delinear suas pequenas construções; então temos
o vermelho, o verde, com garranchos impondo, quase sempre à esquerda, um escamotear
que faz esconder o referente.
Outra coisa, já em franca extinção as cerca de pedras tão comuns outrora, cuja
tradição remonta à sua origem: a Península Ibérica. O casarão abandonado e perdido no
meio da caatinga, situa-se ao longe, fazendo ver a babugem de um esplêndido vermelho,
o contorno nos quatro cantos é negro, configurando uma bela foto, a partir de algo tão
simples, com poucos elementos enquadradas na cena.
Por fim, ao que parece, em quase toda sua obra, o ser humano não é retratado com
nenhuma parecença que remeta ao realismo (quando aparecem traços, são deformações)
nem na parte, nem no todo. Sucede a imagem desabitada de indivíduos. E se aparece um
rosto inteiro, encontra-se coberto por um manto ao redor de cores vivas, ocultando, como
algo parecido com pudor.
Dissimular o que não é possível encontrar na realidade, mas que é corrente e banal,
emerge uma questão do fundo do espectador/leitor. Por que encobrir o humano com
vestes coloridas (eu sei que gera uma voltagem estética, mas não fica só nisso) ou mostrar
apenas fragmentos?
Porém, a depender do tipo de ausência, esta pode ser uma presença que se queixa.
O que chamam de os gritos do silêncio. Assim como se fosse um brado que nunca se
assemelha ou detém parecença com o estado da felicidade, todavia resguarda-se em um
silêncio retesado, duro, em uma imobilidade hirsuta, sem demandar uma completude, um
conselho, uma guarida, um apelo mínimo que seja.
A obra é plasmada por um indivíduo. Há de buscar as respostas das inúmeras
questões naquele que edificou o objeto, acrescentando, talvez por negá-la, por não se
sentir confortável, ou mesmo porque é um assinalado pelas forças do destino a questionar
o que somos obrigados a conviver.
Creio ser suficiente contemplar a tela ou a fotografia, não se faz necessário
perquirir as razões pelas quais está propondo novas formas de representar, de ser, de
ocupar seu tempo, de se sentir ancho dentro de si mesmo.
Por fim, diferente da fotografia dita tradicional, preto e branco ou colorida, é bom
atentar que o evento só ocorre uma vez (a não ser que interfira em foto-matriz apps de
computadores), petrificando o que foi mirado, por pose ou por instantâneo, relegando ao
passado o que nunca mais se repetirá. Essa fenomenologia do chamado “retrato”, depois
do advento tirânico das redes sociais, ou seja, com um celular na mão, ampliou-se
inúmeras maneiras de executar novos meios de expressão. Bem claro que nem todo
mundo vai receber o nome de artista visual.
Há a necessidade de possuir domínio sobre o manuseio, nem sempre simples, das
técnicas surgidas nas últimas décadas. Imprescindível um feeling, um interesse, uma
compreensão do que fora e do que é a fotografia: uma profunda leitura do passado e uma
domada arte lançada aos pósteros.
6.
A natureza íntima das coisas
O conjunto de telas que compõem essa série sugerem mais do que explicitam. Não
que suscitem enigmas o que quer que seja, mas exigem do espectador/leitor um maior
esforço em encontrar o referente (para onde remete) subjacente às linhas sinuosas por
onde dissemina uma luz originada do interior das formas, sendo elaborada por fronteiras
de um negro informe, porém conseguem dividir em partes, configurando compartimentos
proporcionadores de um esquartejamento para que a luz reverbere e cumpra seu papel de
fluir ao contracenar com marcadas linhas negras.
Mesmo assim, emana do interior um discernimento que faz aparecer
discretamente a cor azul, o amarelo, o ocre, de maneira discreta. Logo que entramos em
contato com o título e as representações, nos chega de chofre uma vontade de classificar
essas expressões como pertencendo ao abstracionismo expressionista. Contudo, não há
uniformidade na série, ou seja, não detém a mesma impressão digital. Só resta
esquadrinhar com acuidade as partes na tentativa de justapor fragmentos. Mesmo
perquerindo, ainda persiste o desafio. São perfis de figuras? Rostos evocando Picasso?
Tentativa de dar uma forma às entranhas de um ser? Como disse, a série não é homogênea.
Acontece que uma mescla de formas sinuosas, podem vir a ser um cubismo em
parte, na medida em que certas parecenças de olhos ou dentes (se é que são mesmo),
perfis com sugestão de nariz ou boca sugerem, sendo que a ausência de simetria bilateral
e a visível inquietude que parece se mover, buscando encontrar conforto ou algo no qual
se sinta ancho de determinada maneira.
Sendo assim, evoca algo trágico, tanto pelas formas como pelo uso da tinta negra
com marcas extremamente fortes.
As linhas sinuosas sugerem a interioridade de elementos compondo o todo do
interior, como se buscassem a essência do informe e com impaciência fossem gerando
transmutações. Como não poderia deixar de ser, predomina o estranho ou que não tem
proporção, apenas detendo uma ideia das causas e efeitos habitantes do íntimo,
revolvendo-se em uma procura inútil de consolo ou bem-estar.
Se as imagens detivessem formas que estivessem no lugar de metáforas, talvez
não houvesse tanta dúvida em apontar o que faz do nosso íntimo algo no qual se fundem
as partes, para, a pouco e pouco, justapor como peças de um quebra-cabeça. Mas é tudo
menos isso, menos assim, mais profundo e pleno de meandros, outorgando questões de
complexidade fora do comum. É uma ideia do funcionamento das coisas, arrastando as
causas e os efeitos do que nos organiza interiormente? É uma insistente busca de uma
provável essência, repousando nas partes mais abissais do nosso ser?
Enfim, o pó das perguntas resta no chão, reverberando sua cor de um ocre baço,
pois esta é a cor da terra, da pele, por oposição ao azul, que é a cor da imaginação, do
inalcançável, do que não é tangível.
8.
Sem título (últimos trabalhos, pinturas outras)
As séries não negam o impacto memorável da visita que Azol fez ao castelo de Zé
dos Montes. Em quase todas as obras dessa série, é possível encontrar traços que remetem
aos arcos, as ogivas e as fendas escuras, à guisa de aberturas presentes na geometria dessa
construção, edificada no ermo de uma vegetação sertão adentro. Ainda assim, organizada
com matérias simples, como cimento e cal, acabou por resguardar enigmas, pois não
conseguimos deter respostas para tudo o que seus elementos, inerentes à cultura, porém
tecidos em uma urdidura enigmática, devido à maneira como estão dispostos os elementos
que o compõem.
O exercício por meio da estética de capturar a figura humana inclui não somente
a forma, com suas linhas curvando-se para expor um desenho, que, por sua vez, precisa
da geometria e as necessárias paletas de cores. Com a paleta presente, pode-se julgar a
intenção do registro estético como sua função final.
Mas capturar a figura humana também diz respeito a inquirir acerca da essência,
condizendo com a compleição de como o corpo se porta no espaço ou na interação com
o outro. Quero dizer do corpo e de seus trejeitos e maneirismos na evidência de interagir
com outrem. O que dizem os olhos? A fala e seu timbre? O modo de entrar e sair de um
cômodo?
Essa série de Azol simula um estar presente no cotidiano, apesar das figuras
retratadas frontalmente ou de perfil, não denota como referente o bulício de uma animada
conversação. Já tivemos oportunidade de evocar esse estar no mundo sem maiores
interações com seus semelhantes. Uma das telas sugere uma conversa, sem entusiasmo,
como se fossem períodos sintáticos plenos de lacunas, conduzindo para algo que não
detém de valor.
Uma grande parte da série acomoda homens circundados por cores, tendo em
vista, ter posado para o retrato, com pequenas construções em geometrias simples
(podemos encontrar as composições do Castelo de Zé dos Montes: arcos ogivais,
pequenos obeliscos, cubos com zimbórios). Interessante que muitos retratos frontais ou
de perfil são coroados com tiaras ou coroas, apenas uma for-de-lis evoca a realeza.
Outra forma de apresentar seus personagens é realizada por meio de estilizações,
o que vem a imprimir um caráter simbólico, na medida em que está posta em termos de
metáforas extraídas pelo espectador/leitor, haja vista o fato de ser uma coisa no lugar da
outra. Eis o que significa e se organiza a linguagem metafórica. Nunca apresenta por meio
de um realismo acadêmico ou assemelhado. Quer dizer, não apresenta o retrato fiel, muito
pouco se importando com a idealização conduzida a apelos emocionais acintosos.
Por fim, os personagens coroados estão cingidos por um hieratismo que resvala
em qualquer discurso, quedando-se, parados, calados, indiferentes ao que os cerca. Isso
mesmo, em um silêncio que muito tem de místico, como se pertencessem não ao nosso
mundo, medido através de um raio, mas reside em distritos nos quais predominam em
herdades habitadas por seres vibrando em sintonias outras. Valete, frates!