Clauder Arcanjo: PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CLXII)
Na minha angústia eu buscava a paisagem calma
Que me havias dado tanto tempo
Mas tudo era estéril e monstruoso e sem vida
(Vinicius de Moraes, em “Agonia”)
Carpácio de Almeida passou um ano sabático, longe de tudo e de todos numa ilha distante. Nesta semana, retornou e, impressionado com o silêncio das ruas e o vozerio dos nossos mandatários, enviou-me uma mensagem. Em seu conhecido estilo, homem afeito aos aforismos e paroxismos.
Aqui seguem alguns dos seus apontamentos, extraídos da missiva citada.
&&&
Caro Clauder Arcanjo, retorno, depois de uma decisão acertada de fugir do estresse que me consumia, e encontro a calma e a paz que, antes, me negavam.
&&&
Dizem que a causa é uma maldita pandemia. De origem chinesa e com pretensão de dona-tirana do mundo. Parou nossas escolas, recolheu nossas famílias, decretou isolamento de todos em seus lares… Fechou até os bancos, sempre mandantes em tudo, e não afeitos aos regramentos sociais!
Em minha pequena casa, a situação melhorou. Com todo o dia para meu recolhimento com os livros e os meus escritos. Machado de Assis, Manuel Bandeira, Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade, Augusto dos Anjos… me encontraram mais refeito. Engordei com o leite mugido e as verduras frescas que colhia no solo da minha província. A não leitura dos jornais, penso eu, nos faz bem à saúde. Voltei mais corado, a vizinha da frente, sempre casmurra comigo, me asseverou.
&&&
— Se eu tenho medo da morte? — Indaga-me você.
— Eu deixo tal resposta com Cristo. Jesus sempre se sai melhor dessas perguntas. Mas, permita-me um comentário, Arcanjo amigo: se eu continuasse metido pelas ruas, tangido pelas aflições da bolsa, sempre em busca do melhor emprego, da notícia mais fresquinha (e, no mais das vezes, mais escandalosa)… a terra dos pés juntos me teria em seu colo num átimo, com a brevidade que você nem possa imaginar. Com a pandemia, o isolamento social vai me dar uma sobrevida.
&&&
Noite última, incorri na besteira de ligar a televisão e ouvi o pronunciamento do nosso mandatário maior. Tive vontade, confesso, de prolongar o meu ano sabático. A loucura, aprendi, não guarda limites.
&&&
Desliguei a tevê e fui ouvir Raul Seixas: “O dia em que a Terra parou”.
— Raul para presidente! — Gritei, a plenos pulmões, mal abri a janela.
Não entendi porque acolheram a minha ideia com um vibrante panelaço.
&&&
A vizinha, empregada doméstica em um prédio chique da cidade, confidenciou-me, sempre a vomitar segredos, que o apartamento em que trabalha vem passando por uma mudança de costumes.
— Como? — Indaguei-a.
Ela, mantendo de mim a distância prescrita dos dois metros, soprou-me o seu tratado analítico de convívio social:
— Nos primeiros dias, quando o povo se juntou, de manhã até a noite, no mesmo ambiente… meu senhor, a coisa ficou preta! Lavaram roupa velha, passaram a limpo muitos acontecidos, se zangaram com os hábitos de uns e a birra de outros… Enfim, um barraco dos grandes.
— Interessante! — Espetei-a.
— Não parou por aí, não. Nos dias seguintes, não tiveram escolha, as horas se espichavam, as caras se batiam e só restou uma coisa a fazerem: pai conversou com filho (o que há anos não ocorria), mulher declarou suas raivas e simpatias ao marido (e o senhor nem imagina o espanto!), netos cuidaram dos avós (estes eram uns coitados já esquecidos por todos no quarto dos fundos).
— E foi?! E como tudo acabou? — Caí na besteira de assuntar.
A traquinas subiu nos tamancos altos e me declarou, com o dedo em riste:
— Agora, tão tudo caladinho e doidinho a ler, Seu Carpácio, tal qual o senhor. Vixe Maria!, esse vírus tá saindo melhor do que a encomenda! — E deu-me as costas quando espirrei, saindo de supetão para o seu isolamento social.
Quando fechei a porta, uma ideia subiu-me ao bestunto…
Bom, deixa pra lá! Se cuide, Arcanjo! Uma coisa continua igual nesta nossa nave de loucos: o inferno vem do outro.
*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.