Clauder Arcanjo – Continhos para abrir o ano
Torquato
Há vinte anos.
Antes de entrar em casa, já sentia o perfume dela.
— Querida.
Antes de sair de casa, já sentia o hálito dela.
— Louca.
***
Hoje.
Velho, sozinho e abandonado por ela, prestes a morrer, Torquato ainda sentia a falta dela.
— Cachorra! Apesar de tudo, eu te esperarei no inferno, minha querida louca.
E o padre, mais do que depressa, lhe deu a extrema-unção.
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Tortura
A origem do mal foi sempre um abismo de que ninguém conseguiu lobrigar o fundo.
Voltaire
Nasceu em berço de paz e nobreza. Criado com pão e mel.
Aos dez, armou uma travessura contra a vizinha. Resultado: queda feia da velha senhora e fratura exposta nas duas pernas.
Aos dezoito, uma arma e três tiros. Consequência: três jovens vítimas.
Aos vinte e um, a maioridade no crime. No fundo do abismo, a torturar dois irmãos de sangue.
— Querido, aonde você vai?
A esposa nem precisaria perguntar.
No outro dia, na primeira manchete dos jornais: crime de tortura e parricídio.
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Grito calado
E onde a linguagem atinge o seu extremo, só podemos gritar ou nos calar.
Amós Oz
Tentou-a com versos de empréstimo. Ela, no regaço do silêncio, não lhe deu atenção. Decepcionado, voltou para casa, com a poesia alheia e o violão.
Atacou-a com a música da moda, em compasso de aleivosia e tentação. Ela, na varanda do recolhimento, não reparou naquele parco refrão. Extenuado, ele retornou para o seu quartinho, com ecos da opereta bufa nos ouvidos e nas mãos.
Ele, cansado, desistiu; passando a vagar, sem atinar com o destino.
Ela, na clausura extrema de si mesma, captou no ar um grito calado. Curiosa, saiu do quarto e de casa.
Na esquina seguinte, os versos candentes de um vagamundo, alheio a tudo, tão só votado para a pulsação silente dos dias e das noites.
Pouco adiante, ainda acompanhando o desventurado, ela assuntou o seu próprio coração: este já ardia em profundas chamas. Cumpriu-se, então, o amor.
Clauder Arcanjo
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