Clauder Arcanjo – Doutor João Moção
Num dia azul de um céu profundamente azul e limpo, um homem andava a passos lentos pelas ruas desertas da cidade. De meia idade, portando óculos de tartaruga, chapéu de massa, paletó de linho, cabelos ralos e em desalinho.
Ele, ao tempo em que flanava, estranhava toda aquela pasmaceira; mas o desfile de nuvens brancas, naquele céu tão lindo, fazia com que ele não caísse no fosso escuro das profundas indagações. Que isto de se indagar é coisa por demais perigosa. Seu nome: João Moção.
Quando pequeno, Joãozinho. Nas dobras da infância, brincava e divertia-se como poucos. Joãozinho pra cá, Joãozinho pra lá. Numa folgança só. Ninguém nunca cuidara de seu sobrenome. Até que, certa tarde, surgiu na cidade um homenzarrão metido a amigo do vernáculo.
— Sua designação patronímica completa, inquieto pirralho?
— …
Estas reticências, caro leitor, saíram do cocuruto do menino Joãozinho, seguidas por um arregalo de olhos de quem se espantou na corda do pânico.
— Perdeste a língua, fedelho?
Como criança, quando suspeita do perigo, não leva desaforo para casa, Joãozinho devolveu-lhe:
— Fedelho?! Quem fede aqui é a sua mãe!
Escapou da sua boca, e logo se arrependeu; o homem era alto e forte, e andava de braços com uma pilha de livros. Serviria para arma de rebolo; mal pensou Joãozinho, o senhor lhe respondeu:
— Sei que és inimigo contumaz da sintaxe, da morfologia… enfim, de todos os nobres regramentos da Última Flor do Lácio; a quem, com certeza, tu vilipendias, tal como a horda de analfabetos deste desmundo.
— Ô seu Zé! Diacho de tanta coisa esquisita que sai da sua boca! Vixe Maria, parece mais um cabra das estranjas!
Professor Gaudêncio Campos gostou daquele pimpolho. Não sabia se era a força que ele carregava no olhar, ou a coragem de enfrentar aquilo que não entendia; enquanto muitos simplesmente calavam-se e baixavam a cabeça ao seu discurso letrado.
— Estudas?
— Não. Não tive chance. Nem meu pai tem condição para o meu sustento na escola. A enxada tem sido meu lápis desde cedo, seu dotô.
— Pois comparece ao Patronato amanhã, quero dar-te uma chance de conhecer o maravilhoso mundo do conhecimento. O teu nome?
— Joãozinho, senhor.
— Não gosto de apelidos, nem de diminutivos idiossincráticos. O teu nome completo?
— Sabe que eu num sei.
— Mesmo assim, aparece. A aula iniciar-se-á às 7 da manhã. Em ponto.
E despediram-se. Sem abraços, sem recomendações, sem nada mais.
Joãozinho correu para casa. De início, não disse nada aos seus pais. Depois do caldo de milho, antes de apagarem a lamparina para cobrir a casa com o escuro da noite, ele achegou-se à mãe, revelando-lhe o convite que recebera. “Reze, durma… de manhã, a gente vê!”
No outro dia, Bastião, o pai, saiu bem cedo para o roçado; e Maria, mãe de Joãozinho, o liberou para a escola.
O garoto levava na mão o seu batistério. Único documento que, segundo Coronel Florisvaldo Alcântara, trazia o nome completo do afilhado.
O pequeno aprendeu rápido e ligeiro. Logo se destacou como o mais atinado e atilado, inteligente de dar gosto ao velho professor Gaudêncio.
Foi pulando de ano, avançando no campo da sabedoria escolar. Até que Licânia se fez pequena para ele. Como o professor Gaudêncio Torquato queria-o doutor, cuidou de conseguir-lhe uma vaga no internato da Capital.
— Nunca te esqueças da simbologia do teu patronímico: João Moção. João, em homenagem ao santo poeta evangelista. Moção, que fique bem claro, pois serás sempre um grande moço ao se fazer amigo do saber.
***
Tudo aquilo, numa corrente de lembranças, corria frente aos seus olhos míopes, enquanto João Moção caminhava na província vazia. Melhor, Doutor João Moção. O céu azul, com nuvens cândidas, como única testemunha. Fizera-se catedrático, notável advogado em terras distantes e estranhas; porém, hoje, ele resolvera voltar.
Trinta anos se passaram. Pai e mãe, mortos. Os irmãos, esquecidos. Ele, a flanar, cabisbaixo e dilacerado, a estranhar tamanho vazio… O desfilar de nuvens alvas naquele firmamento tão lindo, como um desagravo, fazia-o vencido; jogando-o no fosso escuro, consagrado às profundas indagações. “Nome?” “Reze, durma… de manhã, a gente vê!”
Clauder Arcanjo – clauderarcanjo@gmail.com