Clauder Arcanjo Mulheres Fantásticas (XIII)
A Mulher Maré
Clauder Arcanjo
— Já vai, Hermínio?
— Sim, minha mãe, mas volto logo.
— Cuidado com a maré! Quando baixa é que é coisa traiçoeira. Lembra o caso da filha do Argemiro? Pois muito bem, cuidado.
Hermínio colheu o resto do conselho materno já na saída do jardim. Moravam numa casa a poucas quadras da praia, numa antiga vila de pescadores. Gente simples, com a vida voltada para as coisas do mar.
Mal chegou diante das ondas, hermínio foi logo tirando os chinelos. Gostava de sentir a areia fina na sola dos pés. Hauriu o vento da tarde, batizado com o frescor das ondas, e, com pouco mais, pôs-se a falar:
— Ando triste, numa tristeza só.
A linha das ondas, maré em vazante, se distanciava da marca dos pés na areia do jovem Hermínio. Longe, no quebrar da barra, algumas pequenas embarcações a marcar a linha do horizonte.
— Preciso muito da sua palavra, querida.
Mal pronunciou tal sentença, ajoelhou-se frente ao largo oceano, as lágrimas a lhe embaçarem a visão.
Instantes depois, um grasnar de gaivota, bem próximo, despertou-o. Resolveu, então, se levantar, os cabelos assanhados pela ventania; caminhou mais um pouco. Na mente, a lembrança de Renata, paixão sua desde o tempo de infância. Brincadeiras, banhos, risos, descobertas. “Olha lá, olha lá, a lua nascendo do mar…”; “Os teus olhos têm a cor do mar…”; “Teu rosto tem um cheiro gostoso… e tem gosto de sal…”
— Ah, meu Deus!
Gritou em desespero, a plenos pulmões. A quebrada das ondas, já distante da praia, abafou sua voz. Tornou-a engrolada; na confusão do choro, do grito e da fúria do tempo.
Hermínio retirou a camisa e deitou-se, rolando na areia úmida.
O sol se pôs, enquanto a lua ainda não se mostrava no firmamento.
— Venha cá! — suplicou.
A maré atendeu-o, lambendo-lhe os pés, as pernas, o tronco e… afinal, beijando-lhe o rosto.
— É você, minha princesinha?! — suplicou.
***
— Não vá, Hermínio, a ressaca é traiçoeira, filho. Em dias assim, o pescado não vale a pena.
Hermínio era rapaz e já mostrara talento na arte da pesca, no manejo dos anzóis e das poitas, no comando da embarcação. Considerava-se soberano em alto-mar, e logo se fez respeitado. “Tal qual o pai, um filho do mar”; era o comentário dos mais velhos.
— Cada dia com seu desafio, minha mãe!
Pouco depois, Hermínio entrava de mar adentro, a cavalgar o pesqueiro nas ondas ariscas; mar revolto, horizonte assanhado, chuva. As poucas jangadas na risca logo voltaram. Destemido, Hermínio resolveu esticar a sua permanência. Quando sentiu que a pescaria nada mais lhe daria, recolheu âncora.
O mar mais se encrespou, e o barco sofria para manter o rumo de volta. O convés banhado pelas ondas, o rangido do madeiramento, o resfolegar das forças da natureza.
Ao chegar à praia, a noite já alta. Mal desceu do pesqueiro, a notícia:
— Uma tragédia, Hermínio. Renata pensava que você não voltaria e que chamava por ela. Entrou no mar e… Argemiro está feito um louco.
***
— Ah, meu Deus!
Hermínio, sem camisa, a rolar na maré alta, levado pelas ondas.
A lua, de brilho mortiço, por entre as nuvens.
— Quer que eu vá, quer?
A maré a tangê-lo para as profundezas: pés, pernas, tronco…
Afinal… alguém o salvou, retirando-o da água, pondo-o nos braços.
— É você, minha princesinha?!
***
Dormiu na areia; quando acordou, madrugada alta, uma gaivota grasnava junto aos seus pés.
“Os teus olhos têm a cor do mar…”; “Teu rosto tem um cheiro gostoso… e tem gosto de sal…”
Clauder Arcanjo