Clauder Arcanjo: PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CLXIII)
(Don Fructuoso Mangas e Clauder Arcanjo em Salamanca, outubro de 2019)
Escrevo estas “Pílulas” no dia 30 de março de 2020. Hoje, segunda-feira, recebo a notícia da viagem, para os braços de La Puríssima, do amigo Don Fructuoso Mangas.
Pároco salmantino, das suas mãos “fructuosas”, num ano nem tão distante, recebi a hóstia consagrada. O corpo de Deus para este servo tão pecador.
Hoje, abatido por não tê-lo mais entre nós, o peito recebe o aperto de uma saudade estranha, um travo triste.
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— Don Clauder Arcanjo, por Cristo e em Cristo retornamos, todos, à Casa do Pai.
Escuto, por entre minhas dúvidas de silêncio, sua voz a me consolar. Ele, sempre dadivoso em curar, com o verbo de Deus e o acalanto da Poesia, as dores alheias. Em especial, as dos mais necessitados.
Mas por que Cristo não o deixou um pouco mais entre nós?
Em outubro último, quando nos reencontramos em Salamanca, Senhor, havíamos marcado uma viagem a Yeltes, seu povoado de origem!
“Conhecerá minha Licânia, Clauder Arcanjo!”; festejou, com um brilho de menino redivivo.
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Quando, anos atrás, David Leite o visitou em sua pequena residência, ele lhe confidenciou que as minhas humildes Pílulas para o Silêncio eram sua companhia diária. Ao tempo em que lhe mostrou o pequeno tomo à cabeceira do leito.
Sabê-lo leitor dos meus escritos tornou-os, para mim, benditos, como se passassem pela epifania, ou uma eucaristia nova. Nada tomado pelo orgulho, mas, sim, pela suprema dádiva cristã: a caridade.
Por sentir-me útil a um homem tão bom, el purísimo.
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— Não percamos tempo com a morte. Falemos da ressureição! — Adverte-me, franciscanamente, Don Fructuoso.
— Eu não sou digno… — E mergulho num choro, lágrimas de um incréu.
Lá fora, um trinado; o passaredo se aproxima da minha janela. Como se os pássaros festejassem a passagem de um santo homem para junto de Cristo, e da Virgem Maria, La Purísima.
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Noite última, dormi pouco, o sono não me acalentava; os lençóis não me aquietavam o corpo, não me mergulhavam na paz do sonho.
A mente como se tomada por uma estranha saudade. Saudade de quem ou do quê, meu Deus?! E somente o silêncio como resposta.
Ao abrir a janela, o céu socorreu-me com um azul divino.
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Tento escrever-lhe algo, Don Fructuoso, mas as minhas palavras-sinos não badalam a contento. A saudade comprime os meus dedos, e as mãos se fecham.
— Arcanjo, nome tão belo. O maior dos anjos!
— Não sou digno, amigo, e….
As lágrimas lavam-me a face, o gosto de sal chega-me aos lábios rijos e contritos.
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Neste instante, na rua à frente, um senhor humilde passa e, não sei o porquê, para e se volta na direção da minha janela.
— Fructuoso Mangas Ramos? — Chamo-lhe.
O velho homem me sorri, saúda-me com suas mãos abertas e… prossegue. Por entre passos lentos e plenos de paz.
— Fructuoso, o puríssimo!
A manhã assume um silêncio de paz, e eu oro por todos. Como ele sempre me ensinou.
— Silêncio e oração, Arcanjo. Melhor remédio não há. E eu te abençoo: em nome do Pai, do Filho e de La Purísima.
— Obrigado, Don Fructuoso. Bendito filho da Espanha. Bendito provinciano de Yeltes. O Senhor esteve, está e estará sempre contigo!
No campanário de uma igreja pequena (“Yecla de Yeltes, hermoso pueblo de Salamanca, en el oeste de España”) os sinos badalam, cristianamente festivos.
*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.