Clauder Arcanjo: Pílulas para o Silêncio (Parte CXLVIII)
Colóquio silente com Lídia Jorge
Com a origem. “A luz brilhante pode proclamar – Não valeu de nada a tua vida./ Isso e muito mais. Mas não poderá dizer – Tu não aconteceste./ Aconteci, e essa é a minha honra desmedida.”
Acontecência. No início de mim, a placenta de uma luz, claro escuro – a valia de tudo pelo cordão de minha mãe. Isso e muito mais. Nada poderá me dizer que não valeu a pena. Aconteci, e essa é a minha origem desmedida. Amém.
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A infância do mundo. “Quando os barcos caíam do céu e os remos/ separavam a verdura da terra, avançávamos/ na água recolhendo redes.”
Meninância. Quando os raios caíam dos céus de Licânia e o mijo do medo vazava pelo fundo da rede branca, avançávamos em direção ao colo de Maria, na certeza da rede protetora contra todos os fantasmas e males.
“Todas as noites podemos voltar a ter dois anos.” Se crianças no mundo.
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Idade do Bronze. “Não tenho dúvida de que os primitivos textos/ falavam verdade – Antigamente, muito antigamente/ Deus calçava os tamancos no meio dos campos/ e fazia a sua justiça.”
Idade da Seca. Não tenho certeza de que Deus sabia dos nossos primitivos sofrimentos. Para falar a verdade – Antigamente, muito antigamente, o tempo calçava o sol com a foice afiada da morte; e, assim como até hoje, faz a sua justiça com divina (in)clemência.
“Estamos sós.”
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Tomei a ideia. “O sobressalto dessa surpresa enche por inteiro/ a minha vida. Ideia, pequena ideia, que nasceu menina./ Como será a tua mancha no papel, depois de impressa a tinta?”
Em Licânia, o sobressalto instiga a palavra que corre, ligeira e por inteiro, para o cerne da minha vida. Caso a ideia tenha brilho que nos alumia, o papel será a prova dessa exata desvalia. No meu chão, só se traduz (e imprime em ferro e sangue) aquilo que nos habita.
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Entre paredes. “O livro que procuro não quer a minha vida.”
Lídia, Lídia, minha história é mais triste, os livros que já escrevi não decifraram sequer um naco da minha lida.
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Com os preceitos. “Tranca a porta do teu quarto à chave/ podem querer roubar-te o coração de carne./ O outro, esconde-o na gaveta para falares com Deus./ Tu, tal como eu, filha minha/ pequenina.”
Ontem, visitei os preceitos de outrora. Na pequena província, os corações eram roubados, quando os casais fugiam nas altas horas.
Tu, filha que não tive, permanece com o coração de luz guardado por Deus no alforje dourado, arcanjo da minha memória.
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Antes que seja tarde. “Antes que seja tarde, vira costas ao enigma/ que a tarde traz, antes que se eleve o som/ e se transforme a tarde em tarde, por falta da íntima/ verdade, a inviolável, que não arde.”
Já é tarde. Vira as costas ao barulho e escuta o bulício silente da tua história. História que não arde no calor das multidões e só se decifra com o encontro teu com o teu cerne, íntimo e inviolável, que não arde. Antes que isso tudo se acabe.
Nota: versos de Lídia Jorge extraídos da obra O Livro das Tréguas (Lisboa: Dom Quixote, 2019).
Clauder Arcanjo