Clauder Arcanjo – Vigésimo segundo conto de separação
— Uma mesa para o casal?
Nem ele, nem ela responderam ao garçom. Segundos
longos.
Sem resposta, ele fez um gesto com a mão direita e
os conduziu para a área reservada, mais ao fundo.
Saiu e voltou com o cardápio. Ressabiado,
afastou-se, como se incomodado com aquele silêncio à mesa.
Minutos depois, retornou e esperou. Caderneta em
punho, a caneta apontada para o papel, os olhos de serviço como se fugindo dos dois.
— O de sempre para mim.
O rabisco da esferográfica fazia o único arremedo
de diálogo.
— Para mim, também. O de sempre — emendou a senhora.
Acostumado a servi-los, em separado, quase que se
confundiu com os pedidos. Como forma de evitar vexame, ele resolveu quebrar a
mudez.
— Uma água com gás e um café expresso, pequeno,
para o senhor. E, para a senhora, um suco de abacaxi com hortelã, já batido com
cinco gotas do adoçante, e uma empada média de frango e ricota. Confere?
Os dois responderam-lhe com os olhos. Um discreto
piscar de afirmativo.
Cuidou de sair da mesa, a levar o pedido ao balcão.
Antes de passar a nota para a cozinha, encostou-se
à coluna de granito, como se se recobrando do esforço (ou da emoção?) de não
transmitir tamanha alegria em revê-los juntos.
Ao longo do ano, acompanhou a separação do casal.
Lembrava-se, claramente, do estado em que lhe servira o primeiro café expresso,
há exatas cinquenta e duas semanas.
***
“Ele quase não levou a xícara aos lábios trêmulos,
mexendo o café com adoçante seguidas vezes. A água com gás servida na taça
elegante ao lado; os Diários, de
Kafka, sobre a mesa. Como se abandonado, relegado ao desprezo. Incomodado com
aqueles olhos baixos, e com a dor que lhe escorria dos lábios finos, eu encostei-me,
pondo a minha mão direita sobre o seu ombro esquerdo. ‘— A vida tem dessas
coisas, senhor!’ Senti, lembro muito bem, vergonha daquela torpe afirmação.
Seria consequência dos livros de autoajuda que eu andara lendo? Coisas pescadas
daqueles tomos usados, já esquecidos pela minha companheira na escrivaninha do
quarto e sala. Ele voltou-me os olhos, e eu quase fugi ao vê-lo submerso em um
mar, revolto, de agonia e aflição. Nas semanas seguintes, no mesmo horário, fim
da tarde, ele voltava, e eu o servia. Passei a oferecer-lhe tão somente a minha
companhia, solidária mas calada. Certas aflições, inferia, só o tempo tem a
prescrição certa, a droga exata, não para curar, somente para remendar,
cicatrizar, evitar a exposição ao mundo tão pragmático. Ao fim de cada mês, um
novo livro como companhia. A náusea,
de Sartre; Vidas secas, de Graciliano
Ramos; O estrangeiro, de Albert Camus;
Memórias póstumas de Brás Cubas, de
Machado de Assis; Enfermaria N. 6, de
Tchekhov; Revolução dos bichos, de
George Orwell; Crime e castigo, de
Dostoiévski; Lavoura arcaica, de
Raduan Nassar; Ilusões perdidas, de
Balzac; Estrada nova, de Cyro
Martins. Eu passava, gravava o título, e cuidava de adquiri-los no sebo no
Centro. Aos trancos e barrancos, minha leitura não era das melhores, li essas
obras, e passei a gostar daquele homem; a acompanhar, silente e solidário, se
posso dizer assim, aquele drama humano. Até que, mês passado, ele voltou com
outro Kafka, A metamorfose. Quando
comecei a ler a transformação de Gregor Samsa, algo me deixara deveras inquieto.
Já com relação a ela, de início, confesso, senti o reverso da medalha: mais
solta, mais livre, a cada nova semana. Sempre ao meio-dia, a presença dela no
balcão. Pedia-me o seu indefectível suco de abacaxi com hortelã (‘cinco gotas
de stévia, não mais’) e, como arremate, uma empada média de frango e queijo
ricota. Tão só com os dias, foi que eu passei a desvendar o embuçado por trás
de tanta conversa entremeada com risos altos e largos. Numa espécie de
disfarce, ela se vestia de palavras e de gestos amplos. Suas mãos me revelaram
(ou a traíram?) o seu real calvário. ‘— A vida tem dessas coisas, senhora!’
Senti, relembro-me, tão claramente, da vergonha daquela minha abordagem. Ela calou-se
e mexeu, seguidas vezes, com o guardanapo, amassando-o; os dedos trêmulos.
Largou uma cédula alta sobre o balcão, copiosa gorjeta, e retirou-se, sem se
despedir. Passou sete dias sem dar sinal de vida. Numa segunda-feira,
mergulhada numa chuvinha impiedosa, ela se (re)aproximou do balcão e tocou no
meu ombro esquerdo. ‘O de sempre!’ Seus olhos denotavam um cansaço singular. A
partir daí, só falava-me de viagens. Cada semana, um país ou uma cidade (exóticos,
para mim) cada vez mais distantes. Islândia, Marrocos, Ancara, Tanzânia, Síria,
Macau, Nepal, Cingapura, Adelaide, Malásia, Lituânia. Passei a seguir o seu
mapa. Naveguei no Atlas, que eu adquirira há tempo e nunca mais usara.
Completava meus ‘estudos’ nos sítios da internet, especializados em geografia,
bem como em história e em tradição de diferentes povos e nações. Na última
semana, vestida com um vestido mais longo, quase de gala, ela portava um guia
de Praga, na República Tcheca. Não me dirigiu a palavra; sentou-se ao balcão,
tomou o seu suco, quase não tocou na empada, pagou e saiu. Nos seus olhos, um
acento de mudança. Uma quietude de quem descobrira o conforto do silêncio.”
***
E, agora, de bandeja nas mãos trêmulas, o garçom volta
à mesa, mesa que preparara para os dois, para servi-los. Algo o inquieta.
— O de sempre, amigos — avisa-os.
Com o reencontro do casal, ele desaba, os olhos
fugindo dos dois:
— E como ficarei sem as visitas diárias dos dois, digam-me?
Como eu ficarei, me digam?
Clauder Arcanjo