CLAUDER ARCANJO – Viver ou não viver, essa não é a questão!
Após a cura do Companheiro Acácio, o mundo mudou para mim. Uma melancolia estranha invadiu o meu riso. A possibilidade de perder o meu amigo dileto mexeu com minhas certezas, arranhou a pele das minhas ilusões, baratinou os projetos que eu acalentava para o futuro, visto anteriormente como promissor, alvissareiro.
Os mais próximos perceberam a mudança no meu humor. Nabuco lambia-me os pés, a tentar remover-me daquele pântano de tristeza. Macambúzio, eu coçava-lhe a cabeça, porém logo voltava para dentro de mim mesmo, a conversar com meu mar de dúvidas.
“Viver ou não viver, eis a questão”, pensei certa tarde.
— Deixe de frescura, seu Clauder Arcanjo! Agradeça o dom da vida. Eu, que vi os olhos escuros da morte de perto, não estou assim, amigo! Reaja! Licânia precisa de nós — convocou-me Acácio.
— A vida vale a pena? — indaguei-o.
Notei que ele ficou rubro, e quando Acácio fica com a tez sanguínea, caro leitor, o melhor é sair de perto.
— Estamos conversando, não se afobe! — tentei serená-lo.
— Você fica metido com leituras que lhe dão as razões dos livros, amigo, e olhe ao que isso leva! Em muitos casos, sua filosofia celulótica mais atrapalha do que ajuda. Ontem, tarde da noite, vi-o sobraçado com o tomo do perturbado do Hamlet. Aquele sujeitinho de Elsinore, amigo, príncipe de araque, é mais doido do que o maior louco de nossas bandas! — disparou.
— Respeite o Bardo! — intrometeu-se Carlos Meireles, que acompanhava o nosso diálogo à distância.
— Olhe aí outro discípulo da teoria de que se deve ver o mundo pelas lentes borradas dos escritores. Não sabe descascar uma laranja, mas vai ao ápice do prazer lendo um mestre a descrever um suco de laranja num café da manhã romântico. Estarei errado, senhor Carlos Meireles? E outra coisa, a conversa não chegou à cozinha dos bibliófilos. Vá lá para a sua releitura de Memórias do subsolo, e me deixe aqui com este deprimido de uma figa! — cuidou o Companheiro de expulsar o Carlos Meireles, enquanto se dirigia a mim com o dedo maior de todos da mão direita em riste.
— Sabe que me veio uma ideia, seu Arcanjo: vou curar essa sua depressão com aquela mesma terapia com que você expulsou a minha Covid. Ou seja, vou enfiar este dedão no seu fiofó. Num instante você vai se concentrar nos assuntos que realmente importam! Estarei errado? — vaticinou Acácio, cercando-me pelas costas.
— Há mais coisas entre o céu e o mar do que desconfia a nossa vã filosofia, Companheiro Acácio. No entanto, fique logo sabendo, o primado de um traseiro incólume é ponto de honra para mim. Questão dogmática! — devolvi, encostando a retaguarda na parede da sala.
Nabuco, até então calado e recolhido, intrometeu-se:
— Mi, mi, mi… Mi… miauuuu… miauuuu…
Pus os olhos em Acácio, interrogando-o:
— Nabuco está rindo de nós?
— De nós, não. Ele está rindo de você. Numa tradução livre e anal, algo como: “Quem tem cu tem medo!”
Carlos Meireles, Uélsson, João Américo e Lourenço caíram numa risadaria frouxa. Eles nos aguardavam na calçada da pensão do Raul, a ouvirem toda a nossa dialética anti-covidiana.
Fechei os meus livros, guardei-os no fundo da minha mala. Com pouco, depois de respirar filosoficamente fundo, anunciei:
— To live or not to live, that’s not the question! Viver ou não viver, concordo, essa não é a questão. Vamos, Licânia nos espera. Chega de vítimas, temos que curar nossa gente; é esta a nossa sagrada, e indelegável, missão.
Ganhei o mundo, sendo seguido pelos meus amigos.
Ruas desertas, becos vazios. Em nós, apenas a certeza de que a cura daquela maldita pandemia não se encontrava na literatura. Conosco, três valorosos aliados: a esperança, a criatividade e a obstinação.
— Covid, aqui vamos nós!
Tal brado ecoou retumbante pelos céus silentes da província ferida, e muito querida.