COMPANHEIRO ACÁCIO E A COPA
Clauder Arcanjo*
— Companheiro Acácio, começou o jogo!
Apesar do meu grito, empolgado pela Copa do Mundo, Acácio nem deu bola à minha exclamação verde-amarela.
Incomodado com tal desprezo, fui ao encontro dele:
— A Canarinha em campo, e você aí… seu…
O olhar acaciano conteve o meu iminente baixo calão. Um pouco mais cordato, interroguei-o:
— E o que anda fazendo, Companheiro?
— Se você tem olhos, Clauder Arcanjo, pode ler — disse-me, virando a capa do livro em minha direção.
Ele estava relendo Prosas seguidas de Odes mínimas, de José Paulo Paes. Em seguida, declamou, altissonante:
— “Onde um lúcido menino/ propõe uma nova infância.// Ali repousa o poeta.”
— “Escolha de túmulo”, um poema magistral, Acácio — emendei.
Enquanto isso, gritaria nas ruas: “Gol!…”. Voltei, mais do que depressa, para a sala de estar, olhos crispados na tevê, aguardando a repetição do lance que abrira o placar a favor do nosso selecionado.
— Brasil na frente, Companheiro! Brasil, Brasil, Brasil…
Nem sinal do meu amigo, apenas o silêncio; quebrado, de vez em quando, por um recitar baixinho.
— Companheiro, você é por demais esquisito. A nação toda de olho na Copa do Mundo, e você aí? — desabafei.
Nem me deu importância; Acácio, deitado na cama, e, desta feita, a revisitar Memorial do convento, de José Saramago. Sem ligar pela minha presença, soletrou, como se em confissão:
— “Porém, hoje é dia de alegria geral, porventura a palavra será imprópria, porque o gosto vem de mais fundo, talvez da alma, olhar esta cidade saindo de suas casas, despejando-se pelas ruas e praças, descendo dos altos, juntando-se no Rossio para ver justiçar…”
Calei-me. Meu silêncio foi interrompido por outro bulício lá fora: “Gol!…”
Tornei à sala, Brasil 2 x 0 Coréia do Sul.
Esperei pela reprise, e vibrei com a penalidade máxima bem cobrada.
— Ampliamos a vantagem, Acácio! Brasil, Brasil, Brasil…
Resolvi não ligar mais para as idiossincrasias acacianas e fui curtir os dribles do nosso escrete. O time movia-se leve e solto, defendendo impecavelmente e avançando com brilho no campo coreano.
Numa jogada mágica, um golaço. “Gol!… O terceiro, hoje é baile!”, declarou o meu vizinho.
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Você, leitor, não vá pensando que me esqueci do Companheiro. Ou sequer o abandonei, sabia-o chato, em especial quando assim o queria fazer-se.
Curioso, fui aonde ele se encontrava. Concentrado, lia agora os Contos da montanha, de Miguel Torga, autor que era um dos seus prediletos. A fim de conquistar-lhe a atenção, provoquei-o pronunciando, de cor:
— “Em Gouvinhas apeou-se. À porta da estação, o guarda arregalou muito os olhos, mas deixou passar. E daí a pouco, no macho do Preguiças, o Pedro subia a serra para dormir o derradeiro sono em Galafura, que era ao mesmo tempo a terra onde nascera e o regaço eterno de sua mãe.”
— “A Maria Lionça”, uma das mais belas páginas literárias. Nunca canso de relê-lo — confidenciou-me Acácio.
“Gol! Brasil 3 x 0 Coréia do Sul!…”
Desliguei a televisão e propus ao Companheiro uma leitura mais compatível com a ocasião: Estrela solitária: um brasileiro chamado Garrincha, de Ruy Castro.
— Vou mergulhar nestas páginas, mas preciso de privacidade. Pode voltar para ver a partida, abaixe apenas um pouco mais o som. Vou fechar as janelas e ligar o ar-condicionado.
“Gol! Brasil 4 x 0 Coréia do Sul. Brasil!…”
No segundo tempo, o gol de honra coreano. No apito final, Brasil 4 x 1 Coréia do Sul.
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Tomei uma chuveirada rápida e, antes de dormir, fui à cozinha para beber um copo d’água. Nesse momento, a surpresa: sentado ao canto, Companheiro Acácio preenchia o álbum da Copa do Mundo. Um riso escapou dos meus “lábios angelicais”.
— No Brasil, está me faltando a figurinha do Casimiro. Na França, o…
E rimos felizes, como há meses não fazíamos.
* Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia de Letras do Brasil (ALB) e de outras entidades culturais.