Licânia, lá vamos nós
Quando pus os pés na saída da delegacia, novo choro meu.
— Biscuí e os meus filhos! — disse, entre lágrimas.
Minha esposa Luzia, abraçada aos nossos três filhos, e acompanhada dos amigos João Maria e Dinoá.
— Clauder, ficamos aqui com eles. Achamos por bem não entrar. Luzia estava muito emocionada, e convenci-a a esperar aqui fora — explicou-me João Maria.
— Miau, miau! — apresentou-se Nabuco aos meus, adorando a condição de protagonista.
— Ô gatinho lindo! — derreteu-se o meu filho Mateus.
— Miauuuu… — retribuiu o felino aos meus pés, com o rabo em pé e com porte elegante.
A pequena multidão de amigos e intelectuais que acorreram em meu socorro reuniu-se no estacionamento. Eu, preocupado com todos, pedi que não se aglomerassem, receando a contaminação pelo coronavírus.
— Amigas e amigos, sou grato à demonstração de carinho e afeto para comigo. Isto muito me conforta. No entanto, peço que retornem de forma segura para casa. Agora está tudo bem. Deverei seguir com minha missão. Licânia precisa de mim! — pronunciei-me, emocionado.
Quando esperava os aplausos, eis que surge outra saudação:
— Nabuco! Nabuco! Nabuco!
O gato roubava novamente a cena, resolvera subir ao meu ombro e acenar a patinha direita para os presentes, tal qual um político de fancaria.
Com pouco, o felino ainda me falou ao ouvido:
— Miau, mi, miau.
Acácio traduziu:
— Nabuco, Clauder Arcanjo, está dizendo que vocês formam uma bela dupla.
Após as despedidas de praxe, resolvi procurar por Carlos Meireles.
— Estou aqui, amigo! Você bem sabe o quanto sou tímido para essas coisas — apresentou-se o nobre bibliófilo.
Fiquei sabendo que Carlos, tão logo fora liberado, tratou de convocar aquela confraria de amigos, intelectuais e admiradores. Não teve maiores dificuldades, segundo ele. Bastou avisar a um, que por sua vez avisou a outro, e a outro, tal qual uma corrente… E o grupo rápido se mobilizou.
Agradeci-lhe, emocionado.
De repente, a orientação do Meton:
— Clauder, permita-me uma sugestão. Siga para Licânia com Uélsson. Ele veio sozinho de carro e se propõe a levá-lo.
— Viemos juntos e vamos juntos! — aparteou Companheiro Acácio.
— Miau, uau… — intrometeu-se Nabuco.
— Nabuco segue conosco! — depressa, Acácio anunciou.
— E eu também! — prontificou-se Carlos Meireles.
Colocamos nossas bagagens na Rural do Uélsson, e Carlos Meireles passou a chave do seu carro para minha Biscuí.
— Licânia, aqui vamos nós! — bradei a plenos pulmões.
Mas, quem disse que a Rural pegou de arranco?
— Tenham paciência, a bichinha não pode ver muita gente que esfria e não quer pegar — argumentou o motorista Uélsson.
Conversa vai, conversa vem… e nada da Rural. Com pouco, Nabuco, sempre mandão e resoluto, desce e convoca os presentes para empurrar o veículo.
Deu-se outra confusão. Metade dos presentes alegou ter mais de sessenta anos nos couros e, por isso, se viam dispensados da convocatória. Raimundo Antônio assumiu a condição de escambichado, com a coluna que não valia dois tostões. David Leite, Marcos Ferreira e Chico Rodrigues esconderam-se debaixo de uma latada. As mulheres, elegantes e de unhas pintadas, mantiveram-se distantes e alheias ao problema. Dona Dulce, Lilia Souza, Kalliane Amorim, Ângela Gurgel, Lúcia Moura, Marlene Maia e outras decidiram puxar um terço. Depois de quase meia hora, apenas o cabo Florisval concordou em empurrar a nossa Willys.
O cabra era tão forte que bastou encostar as mãos na traseira da Rural e vupt… o motor deu sinal de vida. Vibramos, entre miados e palmas.
— O freio não está bom! — berrou o motorista. —Ajudem-me! Freiem este carro!
— Meu Deus. Não seria melhor irmos a pé? —inquiriu-nos Carlos Meireles.
Florisval freou nossa Ferrari sertaneja, e entramos; de uma certa forma, assustados.
— Não precisa se preocupar, minha gente. Ela faz isso para chamar a atenção! Não é, Margarida? —tranquilizou-nos Uélsson, enquanto afagava a direção.
— Licânia, lá vamos nós! — bradei, agora de forma mais tímida.
E pegamos a estrada. Era fim de tarde, o sol já se mostrava retirante no cocuruto da serra. Devido à pandemia, a estrada se encontrava com baixo movimento.
Cada um a pensar com os seus planos e segredos. Eu, à frente com Uélsson. No banco de trás, Companheiro Acácio, Carlos Meireles e…
— Cadê o Nabuco? — interroguei.
Paramos, reviramos tudo e nem sinal do bichano. Acácio, aos prantos; Carlos Meireles, casmurro; Uélsson, intrigado com tanta fuleiragem por conta dum diabo de um gato, e eu…
— Um por todos, todos por um! — decidi, mosqueteiramente.
Quando íamos fazendo a curva para retornar, eis que percebemos a aproximação de uma picape, dando-nos sinal de luz. Era Boghos, Álder Teixeira e Agamenon:
— Vocês se esqueceram do Nabuco! — protestou Agamenon.
Nesse instante deu-se uma cena memorável. Acácio, Carlos Meireles e eu abrimos os braços para receber o abandonado. E sabe para quem o bichano se jogou?
— Que gatinho inteligente! — derreteu-se todo Uélsson, enquanto recebia os lambidos e o ronronar festivo de Nabuco.
— Ô bicho interesseiro! — colhi dos lábios de Acácio, ciumento.
— Licânia, vamos ou não vamos nós? Pelo amor de Deus! — bradei, pela terceira vez, já clamando pela proteção divina.
Ganhamos novamente o asfalto. Pelo retrovisor, ainda reparei quando os três amigos fizeram o nome do Pai, a rogar Sua proteção para aquela nossa odisseia. Só então retornaram para Fortaleza.
— Vou recuperar o tempo perdido. Margarida, sebo nas canelas! — professou Uélsson, com Nabuco postado no seu colo. E acelerou.
Na primeira curva mais fechada, nas imediações da Serra de Itapajé, uma porta da Rural não resistiu à manobra e sacou fora, caindo num fundo precipício.
— Todos estão bem? Deixemos essa porta pra lá! A Margarida anda precisando de outra mais nova. A condenada que caiu estava tomada pela ferrugem.
Entreolhamo-nos, ainda mais medrosos. Quando passei a vista pelo interior da Margarida, percebi que a ferrugem era presença em cada centímetro de sua lataria. Ajustei o cinto e orei.
Na subida da serra, a velocidade fez-se menor. A hora do Ângelus cobria a mataria de uma paz incomum. Apenas o barulho do motor e um passar de páginas no banco traseiro.
Ao virar-me, constatei que Acácio, com uma pequena lanterna, metia os olhos num tomo de Medicina.
— O que andas lendo, Companheiro? — indaguei-o.
— Se estamos indo para curar sua terra da pandemia da Covid-19, senhor Clauder Arcanjo, a ciência será a nossa maior aliada. Estou estudando os compêndios médicos — respondeu-me.
Ao lado dele, Carlos Meireles roncava, inocente. Na certa, a imaginar-se no mundo das musas poéticas.
Concentrei-me no asfalto à frente. Com pouco, fechei os olhos, na tentativa de descansar. Teríamos uma longa batalha para extirpar aquele vírus dos meus conterrâneos. Mergulhei num sonho agoniado. Homens e mulheres sofrendo em leitos de hospital, sem fôlego, a clamarem por ajuda médica.
De repente, senti que a Rural ganhava velocidade. Ao despertar, qual não foi meu espanto! Avançávamos em ritmo desabalado; e, ao pôr os olhos no motorista, este me confidenciou, baixinho para não gerar pânico nos demais passageiros:
— A Margaria aprontou mais uma. Não quer atender aos comandos de freio.
Descíamos a serra, e a força da gravidade nos impulsionava cada vez mais. Nunca rezei um terço tão ligeiro na vida. Acácio, metido no mundo da ciência; Carlos Meireles, entregue a Morfeu e… veio a desgraça. Uma curva fechada à direita nos aguardava.
— Segure o tranco, Margarida! Não vá me decepcionar, bichinha! — O colóquio do Uélsson com a Willys dava a tudo um ar surreal.
Quando da manobra na citada curva, a Margarida manteve-se firme, mas a outra porta não.
Nem o gato Nabuco; este, mesmo com as garras enfiadas na altura do saco do motorista, foi arremessado à toda para fora, aos gritos:
— Miau, miau… zzz… sss.. ***.. mi..au…
No próximo capítulo darei mais detalhes. Por enquanto, caros leitores, rezem pela vida de Nabuco.