O ALIENÍGENA

Clauder Arcanjo*

 


Menina com Máscara da Morte (Niña con Máscara de Calavera), de Frida Kahlo.

 

— Alguns juram, mas nunca creia em juras de licanienses, que a primeira aparição (ou seria o primeiro sinal?) se deu numa sexta-feira, 13. Outros alegam que tal data se perdeu na memória do medo, pavor que apaga tudo, inclusive a crença na força dos Céus.
— Vixe, Maria!
— Melhor, Federardo, é não colocar a mãe de Jesus no meio desta história.
— Concordo, Companheiro Acácio, continue.
Acácio ajustou os óculos, arregalou ainda mais os olhos, e se aproximou da cadeira em que o jovem Federardo a tudo ouvia, atento, mas já com uma certa dose de medo.
— Pois bem. Aquele ocorrido fez com que Licânia mergulhasse numa crise de pânico. As pias Filhas de Maria ligavam o fato à mancebia do Raimundo Sacristão com a filha mais nova do Gonçalo Catimbó. Jovem dotada de uma cintura fina e de olhos de perdição, segundo as más-línguas.
— Minha Mãe do Céu!
— Você me prometeu que não colocaria…
— Minhas desculpas, Companheiro. Isso não mais se repetirá — prometeu o atento ouvinte, amassando os bagos para espantar um pouco o tremor que lhe apertava o corpo.
Era noite, o relógio da Matriz badalou onze horas. Tais badaladas trouxeram à pequena varanda do casarão uma aura tenebrosa.
Acácio resolveu continuar:
— A cidade quase deserta: várias famílias fecharam suas casas e se mudaram para a zona rural; outras, de menos posses, subiram o Serrote da Rola, avisando que só desceriam quando o “bicho” fosse tangido para bem longe. Sem falar que os mais abastados abandonaram suas residências e migraram, de mala e cuia, para Sobral.
Federardo, curioso, inquiriu-o:
— E você, Companheiro, por onde ficou nesse período?
Acácio, empolgado com a narrativa, julgou de pouca importância aquele pequeno fato e disparou:
— Os narradores não se preocupam com o seu destino pessoal, mas sim com o fato histórico.
— Sei, sei…
— Pois muito bem, continuarei. João Américo, o protofilósofo de Licânia, resolveu convocar a Legião dos Frequentadores do Bar do Horácio para uma assembleia extraordinária. Compareceu apenas o Zé Aguiar e o Dion, ambos melancólicos e ainda sob os eflúvios da última carraspana. Mesmo assim, ele fez um discurso em voz gutural, alegando que os bravos filhos da terra não podiam assistir àquela debandada de braços cruzados e metidos debaixo das saias de suas companheiras. Depois de uma semana Licânia sediava o primeiro Encontro dos Caçadores de Alienígenas do Vale do Acaraú (ECAVA).
— Então, Acácio, davam como certo que era um alien…
— Não, a certeza é sempre matéria escassa quando se trata desse tipo de “ocorrência”.
— Compareceram muitos especialistas? Veio gente de fora? — perguntou, ansioso, Federardo.
— De Sobral, veio o Domício Santafé da Natividade Parente, especialista em horóscopo e que, no ano anterior, tornara-se catedrático em leitura do mapa astral num curso que fizera por correspondência pelo Instituto Universal Brasileiro. Da capital, veio o escritor José Alcides Pinto, louco para demonstrar a nova presença dos abutres verdes nas colinas de Licânia. De resto, uma corriola de adeptos da pinga e da bagunça. Logo no final do primeiro dia, depois de discussões acaloradas, a coisa desandou para o convencimento na base do cuspe e da força bruta. Enfim, o Ecava não resistiu à madrugada do primeiro dia. Ou melhor, da primeira noite.
— E a Igreja, Acácio? Dizem que os santos são…
— Calma, rapaz. Deixe-me continuar o meu relato sem interrupções.
— Claro, claro. Desculpe-me.
— Muito bem. Sigamos. O padre Araquento resolveu, instigado pelas beatas e pelos agentes das pastorais, rezar uma missa campal no adro da Matriz. Chamado da Santa Madre Igreja, você bem sabe, tem força na terra de Padre Antônio Tomás. A missa reuniu muita gente, os cânticos ecoavam pelas ruas e becos, instigando fé no coração de todos; mas, quando da consagração da hóstia… faltou luz em Licânia. E, nesse exato momento, o sino badalou doze vezes. Nisso um apavorado gritou: “O Belzebu se apossou do campanário da Matriz!”
— Meu… Não diga!
— Digo e confirmo: não ficou uma alma para contar a história. Nem sequer o padre Araquento e o sacristão. Garantem os fuxiqueiros que esses foram os mais ligeiros na corrida para longe de tudo.
— Mas os dois estavam velhos, não?
— O medo põe sebo nas canelas até de cabra coxo, rapaz!
— Sim, sei.
— Hoje estou aqui. Fui contratado pela prefeitura para desvendar esse mistério. Os negócios estão parados; as aulas, suspensas; os comerciantes, alarmados… Enfim, a cidade se ressente de um prejuízo enorme, difícil até de mensurar.
— Imagino.
— E conto com você, Federardo, como o meu fiel assistente.
— Eu… eu…

& & &

A madrugada ia alta. De repente, com as lâmpadas dos postes a piscarem fracas, a lua se fez encoberta, e uma rasga-mortalha cortou os ares de Licânia.
Alguém bateu na aldrava do velho casarão:
— Quem é? — interrogou Acácio, com a voz trêmula e baixa.
— Sou eu, o João Américo. Só vim aqui avisar ao senhor detetive que o corpo da beata Salu foi encontrado na beira do rio. Apresenta marcas estranhas no pescoço, como se tivesse sido atacada por um…
Acácio e Federardo correram desembestados, mas não na direção do rio.
E tal mistério ainda continua.

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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