O ALIENÍGENA (PARTE XII)
Clauder Arcanjo*
Pintura A Persistência da Memória, de Salvador Dalí.
Companheiro Acácio, recluso há dias, resolveu reaparecer neste nosso relato.
“Sempre estive, seu Arcanjo! Foi você que invadiu o meu relato, outorgando-se o papel de narrador onisciente.”
Não vamos discutir. Somos almas gêmeas, você sabe.
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Numa cidade como Licânia há partidários de todos os credos, seguidores de diversas ciências, credores de bruxarias inconfessas.
Acácio, leitor dos clássicos e admirador da arte e da cultura humanas, sempre propagou aos provincianos: “Só a arte salvará o mundo”.
O nosso protofilósofo João Américo ruborizava-se ao ouvir tal máxima, incomodado por Acácio não mencionar que citada construção era uma paráfrase de uma sentença de Dostoiévski.
“E o que é paráfrase?”
“E quem foi esse Doutoivéi?”
Leitores ignorantes atravancam o caminhar da narrativa.
Façamos o seguinte, darei um intervalo de cinco minutos para que vocês se informem do significado de paráfrase, assim como de quem foi o russo Fiódor Dostoiévski.
Contagem regressiva aberta.
Quem não se informar neste intervalo de tempo que feche este livro e… vá plantar batatas!
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Acácio, ao se inteirar da presença viva do suposto alienígena no mundo licaniense, preparou uma recepção para ele.
Limpou a sala da sua residência na Avenida São João, deixando apenas uma grande mesa ao centro. Sobre ela, expôs os clássicos que mais admirava.
“Devo convencê-lo de que é um mau negócio exterminar-nos. Para isso apresentar-lhe-ei a nossa maior riqueza: a cultura” — pensou.
Na cabeceira principal, Machado de Assis, ladeado por Sófocles, Shakespeare, Cervantes e Dante. À esquerda, Tolstói, Graciliano Ramos, Tchekhov, Camus, Gabriel García Márquez, Drummond, Turguêniev, Dostoiévski, José Alcides Pinto. À direita, Eça, Maupassant, Goethe, Baudelaire, José de Alencar, Borges, Virginia Woolf, Miguel Torga. Ao fundo, na outra cabeceira: Platão, Moreira Campos, Guimarães Rosa, Bandeira, Rachel de Queiroz, Melville, Flaubert, Nelson Rodrigues, Ariano Suassuna.
“Penso que esta amostra literária será suficiente” — concluiu satisfeito.
Nas paredes, vários quadros do mestre Audifax Rios.
“Recebê-lo-ei ao som de Luiz Gonzaga; é sempre bom transpô-lo para o clima nordestino. Caso prefira algumas imagens, já estou com os filmes de Glauber Rocha selecionados” — imaginou.
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Dois dias e duas noites se passaram. Nada. Tão somente o silêncio da longa espera.
Na terceira noite, cansado de revisitar a profundidade dos clássicos, Companheiro Acácio decidiu espairecer lendo um autor contemporâneo festejado pela crítica de rodapé de jornal. Entrou na madrugada na trama do best-seller, quando… a luz se apagou.
— …uuuuuuu… Auuuuuuu… uuu…
— O alienígena! — Acácio gritou, apavorado.
— …uuuuuuu… Auuuuuuu… uuu…
Sentiu quando algum ser tomou-lhe das mãos o que lia, dando-lhe depois um tapa com luvas gélidas. Em seguida bateu a porta e sumiu pelas ruas de Licânia.
— …uuuuuuu… Auuuuuuu… uuu…
*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.