Pílulas para o Silêncio                              (Parte CCCLXIII)

                           

 

Clauder Arcanjo*

 

Tropelias

 

Calixto López saiu de casa. Não tinha paciência para as admoestações dos pais, dos tios. Enfim, de todos os parentes e contraparentes.

— Prefiro o desconhecido a tanta pressão! — anunciou ao partir pela porta da frente. Na mala, uma muda de roupa e o radinho de pilha.

Volte aqui, condenado! — gritava o velho galego, de cinturão em punho.

Nem ligou para o chamado paterno.

Na esquina do Mercado Público, encontrou-se com Galimba.     Este sempre com convites para as mais estranhas aventuras.

— Que tal um banho na Pedra da Luzia? Com a enchente, Calixto, o remanso está desafiando os mais corajosos.

— E a minha mala, Galimba?

— A gente guarda dentro de um fojo que cavei na sombra daquela oiticica grande dentro do cemitério. Ninguém mexe lá. Todos se pelam de medo de alma.

Entraram no campo-santo, guardaram os pertences de Calixto e correram para as ribanceiras do Acaraú.

Amigos das travessuras, chegando ao rio, pisaram nas roupas que estavam a corar sobre as pedras.

— Condenados! — gritavam as lavadeiras, expulsando-os a pedradas.

Astuciosos, caíram n’água, nadando para a parte mais funda do rio.

Sem se darem conta, achando-se os tais, foram se deixando levar e, de repente, viram-se puxados pelo remanso. De início fizeram troça da potência da correnteza, zombando com os canoeiros:

— Venham para cá, seus éguas!

Quando perceberam que não venceriam, levantaram os braços em desespero. Tentaram pedir ajuda aos gritos, mas engoliram água e perderam as forças.

— Cadê eles?

 

Os canoeiros desciam e subiam. Correnteza forte, o remoinho os mantinha afastados da Pedra da Luzia.

— Lá. Vejam!

Era um deles. Quando tornou a aparecer na superfície, foi içado pelo arpão do Serafim. Vomitava, tossia. Os olhos espantados, em agonia pela vizinhança da morte.

 

& & &

 

Na beira do rio, um corpo no chão. E um tumulto de gente em tropel. Notícia de desgraça sempre atraía uma multidão em Licânia.

— Eram dois. Mas, e o outro?

Entraram pela noite à procura do Calixto. Foram até o limite de São Francisco do Estreito. Correram os olhos pelas ribanceiras, alumiando as touceiras para ver se davam pelo garoto. Nada.

Retornaram e logo a notícia se espalhou.

O padre Araquento fora então encarregado de dar a notícia à dona Maria López. A galega desmaiou nas primeiras palavras do velho pároco.

— Perdi meu filho, seu padre, e nem vou poder velá-lo — lamentou em prantos.

 

& & &

 

Sete dias depois, o Baltazar dormia bêbado sobre a sombra da grande oiticica no cemitério São Sebastião. À meia-noite, foi acordado por uma voz manhosa:

— Deixe eu pegar a minha mala. Quero voltar para casa.

— Senhora Sant’Anna, minha madrinha, valei-me!

Baltazar correu desembestado e só foi parar frente à Igreja Matriz. Lá ficou o resto da madrugada, de joelhos, ao pé da imagem de Sant’Anna.

No outro dia, logo cedo, Licânia em tumulto, dividida:

— É mais uma canalhice de algum vagabundo!

— Não!, é um milagre: Calixto está de volta. Virou santo. São as orações, graça obtida pelas caridades da velha López.

A casa da família López permanece fechada. Ouvem-se tão somente risadas, como se habitada por uma família feliz.

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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