PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCCLII)

Clauder Arcanjo*

COLHEITA DO INUSITADO

Para Adélia Woellner

O inusitado nasce na porta fechada, batida na face de quem espera uma
palavra bem-vinda. Mas, creia-me, o inusitado também brota da janela aberta
— e este tem muito mais brilho —, quando alguém, apesar de todas as
penúrias, divide o pouco e deste pouco obtém o milagre da transmutação para
o muito.
O inusitado foi visto ontem de pés descalços caminhando pela areia da
praia. Dizem que estava sem relógio, sem dinheiro no bolso, desabrigado na
cidade. E, apesar de todos esses senões, andava de rosto risonho, boquiaberto
diante da grandeza do instante.
Na manhã de hoje, disseram os mais afeitos à vida alheia, o inusitado foi
flagrado conversando com um policial na esquina mais violenta do Rio. Até há
pouco os fofoqueiros disputavam o que fora objeto daquele, como direi,
inusitado colóquio, contudo uma coisa é certa: depois o senhor da lei guardou a
arma e passou a orientar o trânsito caótico que se formara próximo daquela
cena. “Sigam para as suas casas. Vão todos em paz. Cuidado ao atravessarem
a rua!”. Foram as únicas frases colhidas naquele momento incomum. E o mais
inusitado ainda, não usou a irritante máxima: “Nada a declarar!”.
À tarde, entrei em casa e cuidei de tirar um cochilo. E o inusitado
daquele instante: o sono não veio. Eu, legítimo cearense, criado e cevado na
rede de balanço, costumeiro berço do meu descanso vespertino depois do
almoço. Hábito herdado do meu pai, o bom Zequinha. “A sesta renova o
homem para a luta”, orientava-nos.
Saí pelas ruas. Entrei na barbearia, mas não me barbeei. Na rua
seguinte abri a porta de uma cafeteria, sentei-me, olhei o cardápio e,
acreditem, não pedi um café. Servi-me de um chá gelado.

          Desorientado, tomei o rumo de casa. Lá me apresentei casmurro, como
se o mundo se me revelasse indecifrável, inexpugnável… enfim, inusitado.
A noite chegou e, com ela, sua bagagem de silêncios. Nada se falava.
Fitávamos o chão, enquanto o inusitado se encontrava no céu: um luar de maio
ladeado por um véu de estrelas. Nesse momento minha amada me liga e se
declara saudosa, a repetir que sente a minha falta e que a quarta-feira parece
que não chega. Este será o dia em que retornarei aos seus braços.
— Clauder Arcanjo, e o inusitado continua?
Ah, comum leitor, deixemos a crônica de hoje de lado! Juro a vocês que
colherei toda a safra na quarta-feira e terminarei esta página dominical.
— Mas isso todos nós sabíamos! Não é inusitado.
E quem disse a vocês que a colheita do inusitado se dá assim,
inopinadamente?
Bom domingo. E feliz Dia das Mães!

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-
grandense de Letras.

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