PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCCLV)

Clauder Arcanjo*

Confidências a Hermínia Lima

 

As fotos no velho álbum

trazem de volta uma saudade

que rasga o tecido da tarde.

 

Hermínia, essa tarde me sangra os ossos, e eu canto, entretanto os males mais se revigoram. Desorientado, saio para a calçada e lá reencontro a cadeira de balanço, fantasma do meu pai, “que grita um lamento /amordaçado pelo tempo”.

 

A casa adormeceu silenciosa.

Só as redes cantavam

sua canção de punhos em movimento,

acalantando o sono e os sonhos,

nos braços alaranjados

das maternas e ternas varandas,

volutas ao vento vivo e violento

de um outubro saudoso e sonolento.

 

Levanto-me da cama e eu-menino sinto os cheiros dos lençóis da rede dadivosa de mamãe. Maternos e ternos lençóis, com aroma de Céu.

Corro pela casa. As paredes modernas já não têm os armadores das redes da minha infância.

Seria esta a minha casa?

 

As redes silenciadas,

metáforas algodoadas,

pendentes, maleáveis e móveis,

como a vida e o passar do tempo.

 

& & &

 

No fundo da noite, no desvão do meu sonho prateado, ouço o ronco-acalanto do meu pai.

No telhado, um gato gentil, tal qual um “fantasma arisco, /a correr risco, /sob o ressonar do patriarca”.

Finjo dormir com receio de perder a magia desse instante cantante.

 

Sinto saudade de dias idos,

quando até os fantasmas

que habitavam minhas noites,

me visitavam,

sussurrando medos

em meus ouvidos

 

& & &

 

O pragmatismo enferrujou a roda-gigante dos meus risos, a boca ficou amarga para o contentamento, os dentes rilhando lembranças de antanho, sem terem coragem de abocanhar a maravilha da última sonante e fugaz reminiscência.

 

E os meus medos gritavam

saindo da minha boca,

num grito estridente

escapando entre os meus dentes

e se perdendo no ar.

 

& & &

 

Algo chafurda em mim. Há de ser um cheiro colhido na curva da manhã. Ou será um balbucio indefinido que me chega no frescor da tarde chuvosa, ou até mesmo a voz da criançada em Licânia a me convidar para o futebol na areia do rio? Não tenho, nem quero, respostas. As perguntas com sua carga de sugestões me enchem o pote do dia. Dia até então insosso e sem rumo.

 

Às vezes, a saudade chega tão lâmina

que fere a pele da tarde

e derrama, sobre mim,

o líquido negro de uma noite

de estrelas apagadas.

Uma lua carpideira,

ensanguentada,

em voz minguada,

murmureja uma canção fúnebre.

 

Haveria, em mim, uma “Cantiga para cessar ausência”?

 

& & &

 

Rodam na minha mente

imagens que não mentem,

e me lembram,

de uma ausência

que fere fundo.

 

— Pai, sinto sua falta. De vez em quando, meu velho, venha, mesmo que em sonho, e me revele os segredos da sua sapiência. “Hoje, quando a luz acordou o dia /cada raio acordou em mim uma saudade.”

 

Há momentos em que o grito aprisionado

se agiganta.

Nessas horas, o melhor,

é escancarar a porteira do peito

e permitir vazão

ao que vem da garganta.

 

& & &

 

Ando consertando palavras

tentando finalizar um concerto

que não se encerra…

 

Palavras não se deixam consertar na minha oficina diária. Em especial hoje, Hermínia Lima, em que me entrego à tua melodia, poética deliciosa. “Quando uma leitura nos encanta, /o livro que nos fala nela, /enquanto conta, /também canta e acalanta /nossos desencantos.” E o meu banjo-banzo transborda um rio de dissonâncias.

 

A vida agiganta-se

ao longo da espera

e da tolerância dessa quimera.

 

Fonte: Livro das ausências, de Hermínia Lima (Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2023).

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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