Pílulas para o Silêncio (Parte CCCLVIII)

Clauder Arcanjo*

Pintura de Vicente do Rego Monteiro

 

Meus quintais

 

Em nossa casa em Santana, minha eterna Licânia, não havia quintal. No entanto, acreditem, isso nunca foi um problema. Passei a considerar o pequeno jardim, sempre muito bem cuidado por mamãe, como o meu quintal. Lá colhia frutas vermelhas; na realidade, botões de rosa; ouvia o canto dos pássaros, estes em bulício na copa dos fícus junto à calçada; enterrava ali alguns tesouros (moedas antigas) na terra úmida de diversos jarros, imaginando-me um corsário perdido no sertão cearense. Bastava ver tudo através dos olhos da criatividade infante.

Quando nos mudamos para Fortaleza, constatei que, ao fundo da casa na rua Graciliano Ramos, havia um terreno pronto para ser o novo quintal. Contudo a primeira reforma invadiu aquela área, transformando-a numa grande sala de visitas. Em vez do aroma da goiabeira, o cheiro do café; em lugar da persistente sinfonia dos grilos, o barulho da tevê. Com pouco tempo elegi o terreno do vizinho, infestado de mangueiras enormes, como o quintal da minha adolescência. Até saguis lá moravam! Sem mencionar um enorme camaleão que, certa manhã de sábado, quebrou a monotonia do final de semana, desfilando, altaneiro e garboso, no muro a divisar o nosso lar do pomar do vizinho. Foi uma reviravolta em nosso ambiente: alguns se armaram de chinelos e sapatos na tentativa de expulsá-lo da nossa convivência. Eu, no meu primeiro arroubo de ecologista, saí em defesa do visitante. “Ninguém aqui vai cometer tal crime!”. Para minha sorte, pouco depois a iguana retornou à copa das árvores, e a paz voltou a habitar entre nós. As borboletas faziam festa depois das chuvas. Todas de um colorido sem igual. Meu quintal adotivo era um ecossistema valioso.

Ao me transferir para Salvador, morei pela primeira vez em um apartamento. Privado de um pomar, passei a levá-lo na lembrança. Nas noites distantes e tristonhas, fechava os olhos e convocava-o para ser o palco das minhas divagações: sanhaços, graviolas, melão-de-são-caetano, pirilampos. Flora e fauna revividas.

Hoje precisei de um poema para expressar este sentimento que sempre habita em mim, porém os versos não vieram. Tive então que recorrer a O livro do amor, de Giuseppe Caonetto: “No coração de quem ama/ há um quintal.”.

Declaro aqui a minha eterna paixão pela Biscuí e, por consequência, pelos meus quintais.

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

Deixe um comentário