PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCCLX)
Clauder Arcanjo*
Clauder Arcanjo*

Quatro margens para a alquimia dos dias
No desenho de tudo
o esboço da vida
No instante sem riso, o rascunho da tragédia. O passivo encontro do nada com o que poderia ter sido. Eis que um rabisco surge, e a vida brota e pulsa errante.
e quando cresci
soube que a avó
era heraclitiana
Meus avós paternos foram castigados pelo glaucoma; a cegueira os fez mais atentos e vigilantes. Mãezinha Ana percebia a chegada do meu pai pelo crescido do bafejo do carinho nos ouvidos atentos.
& & &
Ser teimoso no meu sertão é indispensável para manter aceso o pavio da existência. Letrados pelos rabiscos,
porque precisam
da teima
de desenhar
o que é bonito
na cor de cada dia
de cada água e chão
cada vez
E, a todo momento, a “sua única certeza/ (um céu sobre si)/ é sempre/ e sempre/ um outro céu/ cada vez”.
um lugar
é tudo que possa ser
Minha província é tudo que posso ser: engenheiro, trilhando na rota dos fonemas; poeta, adulando vocábulos ariscos; cronista, catando causos no “soluço de ir/ abraço de chegar/ beijo de ficar”.
acho bonito quando um lugar
tem as coisas que são assim
sujadas de tempo
Quanto ao segredo do destino, se algo dele decifrei, eu “ouvi de um homem/ velho teimante da vida”. Ele nada revelava por completo, tudo tentava enterrar… E, assim, mais a semente brotava, em bonitezas de esconderijos, “quebradiços/ de memória”. Inteirezas.
& & &
Nessa aurora indecifrável, “no cantar cada qual/ de cada voz”, tão somente um trinado em compasso miúdo e extremoso. O que nos quer revelar?
e é só o insustentável desejo
de guardar o incerto
no abrigo de um nome
Entre anjos e perseguidos, eis-me passageiro de um encanto já distante. Exilado do meu chão, revelo-me um palhaço ao tentar pendurar-me num “fio de labirinto/ cortado a meio caminho/ por uma inocência qualquer/ de um qualquer passarinho”.
o destino é servo
do tempo
senhor apenas
de duvidosas certezas
sem carta de navegação
Serviçal dos espinhos, margeio as ribanceiras do meu rio, com receio de dessedentar-me na aluvião alheia. Quem nos chama?
destino lhe chama
e é só o medo de uma criança só
O melhor de mim morreu na criança que me pediram para sacrificar. Ainda choro, envergonhado de tamanha falta.
Hoje a revelação (única?) que mais valorizo é “que toda maquinaria/ de rodar o existir/ é nada se não sente”.
e são
os dias
corais de sóis
nas réstias das tardes
abajulando noites e veredas
alumiando descaminhos
Uma rima pousa sobre o meu ombro baixo, peso da memória dura, e vejo que foi
ali
onde guardei as primeiras rimas
sem arte
mas tão feitas de mim
… espero que, “ali/ lá onde alguém se vai/ porque alguém espera”, uma surpresa consagre o dia. Onde?
ali
lá onde alguém se vai
porque já ninguém espera
Fonte: Três margens para a alquimia dos dias, de Dércio Braúna e Kelson Oliveira; ilustrações de Ícaro Malveira – Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2024.
*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.