PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCCLXII)
Clauder Arcanjo*
(Pintura de Audifax Rios.)
Visita a Licânia
Malas em estado de prontidão. Volto a Licânia com mais um livro na bagagem: Um provinciano no caos. Como sempre fiz com os outros, terminarei sua apresentação na minha terra natal.
Tinha sido um pedido do meu pai: “Você pode ir lançando nas outras cidades, mas termine de apresentar seus livros aqui!”.
Um provinciano no caos seguirá na companhia de minha Biscuí, dos meus filhos e dos cúmplices de jornada literária: Companheiro Acácio e o gato Nabuco.
— O que levaremos para ler nesses dias? — pergunta Acácio.
— Um provinciano no caos — provoco.
— Esta obra, você sabe, tem um erro grave. Melhor, gravíssimo! Qual é?! Ora, nela pouco sou mencionado.
Nesse instante Nabuco protesta:
— Shhzz… shifzzz… miau!
Acácio, com receio das garras nabuquianas, complementa:
— Nem Nabuco.
Como me encontrava pouco paciente, arrematei:
— Se quiserem escrever algo sobre suas vidas, amigos, o que não falta em minha casa é caneta e papel.
Os dois encerraram a conversa. Antes pediram, com os olhares, a mediação da minha Biscuí. Ela, conhecendo-os até melhor do que eu, não aceitou aquela causa e continuou na arrumação das roupas para o período.
— Ficaremos até domingo?
— Sim, Biscuí. Retornaremos a tempo de almoçar em Fortaleza.
& & &
Antes de dormir, orei, pedindo a proteção de Sant’Anna, bem como a intercessão de meu pai e de minha sogra. Ambos, julgo, no reino celestial.
— Senhora Sant’Anna, papai e dona Cleyde, cuidai da nossa viagem.
Em sonho, a chegada a Licânia. Pelas ruas, o desfile da bandinha Furiosa, acompanhada pelas beatas e por uma récua de meninos traquinas. Estes a chuparem limão azedo, a fim de atrapalharem a performance dos músicos de sopro. Os dobres dos sinos no campanário conclamando a todos para mais uma novena em honra à padroeira. “Sois vivo retrato…” Sem mencionar a sinfonia do passaredo nas copas dos benjamins.
Quando despertei, era madrugada. Levantei-me para tomar um pouco de água na cozinha. Ao passar diante do quarto de visita, a voz inconfundível do Companheiro. Ao abrir a porta, devagar, flagrei Acácio a ler, em voz alta, Um provinciano no caos. Na poltrona, como crítico espectador, Nabuco. Imersos num recital de troça e zombaria com os meus versos.
— E esse poema, Nabuco, que coisa mais ridícula. Escute:
A timidez marcou-me o engatinhar.
Na consciência e na sã inocência,
Encarei-a. E até hoje não sei dizer
Se a venci. O olhar acanhado meu
Só se revela noite alta, sem véu;
Quando sou eu, só comigo mesmo.
— Miau… shfiiii… Shi, shi, shiiii…
— Ô poetinha chinfrim! Não concorda comigo, Nabuco?
Entrei sem me anunciar, atacando-os com palavrões, chineladas, unhas e dentes, colocando os dois para correr do meu lar.
— E a nossa viagem, Clauder Arcanjo? — tentou defender-se Acácio.
Sem medir os impropérios, pus aqueles pulhas de porta afora, disparando:
— Vocês vão para a baixa da égua, ingratos! Nossa família prefere ir só a mal acompanhada. E devolvam-me aqui o meu livro, seus safados!
*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.