PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCCXXXVI)
Clauder Arcanjo*
(Pintura “O Corpo de Cristo Morto no Túmulo”, de Hans Holbein)
Leituras acacianas
— “Amai-vos uns aos outros, padres — ensinava o stárietz (até onde Aliócha conseguiu rememorar depois). — Amai o povo de Deus. Não somos mais santos que os leigos pelo fato de termos vindo para cá e nos enclausurado entre estas paredes mas, ao contrário, cada um que veio para cá, já pelo simples fato de ter vindo, conheceu consigo que é pior do que todos os leigos, do que tudo e todos na Terra…”
Companheiro Acácio, sozinho em seu quarto, a ler em voz alta uma passagem de Fiódor Dostoiévksi, em Os Irmãos Karamázov.
Sabia-o preso às suas confabulações metafísicas. Melhor, então, respeitar a sua momentânea clausura.
Tomo um café e me sento na poltrona da sala.
Após algum tempo Acácio dispara:
— Toda a minha vida está atrás de mim. Vejo-a inteiramente, vejo sua forma e seus movimentos lentos que me trouxeram até aqui. Há pouco a dizer sobre ela: é uma partida perdida, eis tudo.
Dessa vez Companheiro mergulha em A náusea, de Sartre. Um incômodo me invade a alma, tenho vontade de ir até o quarto e dividir com Acácio nossas angústias. Algo me detém e fico a meditar. Uma estrofe de Pessoa se mistura por entre uns versos de Drummond e me atrapalho poeticamente. Acácio riria se soubesse disso: sempre me julga um péssimo recitador.
Lá fora, um casal de bem-te-vis monta seu ninho e isso me sopra na alma um bafejo de esperança.
Pouco depois me sinto de volta:
— E de repente o sino do Rosário se tangeu — col a col, cantarol. Ah, quem batia, sabia: tantoava em repique e repinico, muito claro no bimbalho. Mas, foi logo a forte, dez mãos pelo badalo, pegou a bedelengar a tôrto, dlá e dlém, parecia querer romper de vez a forma de seu carôço dele. Virgem!
Vejo, nessa passagem de Guimarães Rosa, em “O recado do morro”, que Acácio apresenta pequenos sinais de melhora em seu astral psicoliterário. Sempre que o flagro lendo (e relendo) a prosa rosiana, um riso maroto lhe invade os lábios e não se perde mais em nonadas.
Pelo jeito, logo, logo estaríamos a nos abraçar, não sem antes ele sugerir uma légua de leituras imprescindíveis a quem, como eu, se considera um aprendiz de escritor.
Satisfeito, entregue a divagações, volto a me servir de outra xícara da rubiácea e espero pelo companheiro Acácio.
— Que fim levou o vampiro louco de Curitiba, esgueirava-se de mão no bolso à sombra da meia-noite, não era o velho Jacó assobiando com medo do escuro?
Um quê de alerta me invade a alma. Dalton Trevisan?!
Antes de qualquer reação minha, Acácio declara:
— Uma rosa no teu jardim abre as mil pétalas do único olho.
O vento despenteia a cabeleira da chuva sobre os telhados. Mesmo quando para a chuva, as árvores continuam chovendo.
A chuva lava o rosto dos teus mortos queridos.
E uma lágrima embaça a lembrança dos meus mortos.
Obs.: trechos em itálico extraídos das seguintes obras: Os Irmãos Karamázov, de Fiódor Dostoiévski; A náusea, de Jean-Paul Sartre; No Urubuquaquá, no Pinhém: Corpo de Baile, de Guimarães Rosa; e Antologia pessoal, de Dalton Trevisan.
*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.