PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCIII) – Clauder Arcanjo
Chovia fino. Ele se aproximou num trotear miúdo. Sem se anunciar, desceu do cavalo, coçou a barba rala e ajeitou o chapéu sobre a cabeça. Nesse instante lembrou-se de que saíra dali havia mais de dez anos.
Quando entrou no alpendre, sentiu-lhe a presença.
Engoliu a saliva grossa, na tentativa de fazer com que a voz lhe saísse firme.
Quando ele pôs os olhos na saleta, vencendo a porta de entrada, viu, ao canto, a imagem dela no espelho. Arrumava os cabelos longos, ajustava o vestido de chita.
Um sorriso se formou nos lábios dele, marcados pelos anos. Apesar do risco da repulsa, concluiu que ali, junto a ela, era o seu lugar.
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Ao ler uma passagem mais romântica no livro de cabeceira, sentiu-se como se presente na novela.
— De que está rindo, Gumercindo? Espero que não esteja mangando de mim!
Guardou o pequeno tomo na gaveta, e se virou na direção dela. Quando viu a cabeleira, repleta de grampos e bobes, não conseguiu disfarçar o espanto. Refeito, ousou uma tímida declaração de amor:
— O riso me acode quando penso em ti, Dalmira.
— Está com os parafusos da cachola frouxos? — disparou a companheira, tentando arrumar mais alguns grampos no cocuruto.
Gumercindo, precavido, deixou-a em paz com o seu penteado esdrúxulo, e retornou para os encantos da mocinha da novela.
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Cansado de tentar adivinhar o dia da chuva, e ter que se justificar perante a numerosa tribo, o sofrido pajé resolveu providenciar uma assinatura do Canal do Tempo.
— Hoje teremos a presença de uma nova frente fria, vinda do Pacífico; aliada a uma zona de baixa pressão, próxima ao Equador. Com a união desses dois fenômenos climáticos, ocorrerão chuvas esparsas no final da tarde. Algo não superior aos vinte milímetros.
A tribo ficou em silêncio com aquele anúncio. Alguns, atribuindo ao chá que o velho bruxo passara a tomar; outros, julgando-o já castigado pelos anos.
No final da tarde, com o céu limpo e o Sol ainda imperial, o pajé esbravejava:
— Malditos reis da chuva dos homens brancos! Malditos!
Naquela noite ele foi deposto do cargo, e dado como imprestável para a nobre função.
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Daria tudo que tinha para ouvir a voz de Crescência reclamando dos seus porres. “Vai acabar com a pinga do mundo, ou para antes, desgraçado?”
Os olhos turvos de saudade, a boca seca, os pés mal postos nas alpercatas. Ajoelhou-se, levou a mão direita para a placa de metal afixada no túmulo de Crescência e, entre lágrimas, sussurrou:
— Você, Crescência, que nunca bebia.
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Queria ser notável, foi ordinário. Ao julgar-se brilhante, mostrou-se reles.
Ao desistir do posto de extraordinário, todos o aclamaram como um cidadão singular.
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Notabilizou-se por julgar as obras literárias tão somente lendo o impresso nas orelhas dos tomos.
Quando o desancaram, ao descobrirem o seu “estranho” método crítico, ele, sem meias palavras, defendeu-se:
— Não olheis para o meu pecado, mas para a fé que anima a minha crítica.
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Dorgineudo nasceu quando o sertão sofria a pior seca do século. Cresceu miúdo e magro.
Apesar da pequena estatura e da magreza, aos dezoitos anos não lhe faltavam pretendentes.
Os rapazes de Licânia, enciumados, quiseram descobrir o segredo de Dorgineudo. Quando indagaram a Raimundinha do Pau Caído, ela, com um riso safado, revelou:
— O que Deus lhe tirou de altura lhe devolveu em macheza.
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Percival Sumídio era capaz de escalar o Himalaia para descobrir um malfeito de um vizinho. No entanto era incapaz de subir um montículo de terra para fazer um bem a um amigo.
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Quem não chora suas desventuras não será digno de sorrir no despontar de suas venturas.
*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.