PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCLCII)
Clauder Arcanjo*
Confidências a Maria Lúcia Alvim
Com fastio de tudo, tropeçando no vazio das horas, eis que me encontro com Maria Lúcia Alvim, em Batendo pasto:
Morcegos são filhos indesejados da noite
Eu os incito
fluxo e refluxo
Pendurados
na parte mais alta do meu coração
Corro os olhos pelo chão, envergonhado. Elevo a vista, em seguida, para as nuvens, e sinto que algo tocou fogo no influxo da saliva. Vocábulos estranhos que calam e se penduram no varal do coração.
Figueira-mansa
escamosa
solitária
tenho as costas perfuradas por dois olhos
minhas artérias pubescentes
pulsaram no batismo do teu nome
árvore-corpo
pojando
— Quem és tu, Maria Lúcia Alvim?
Grito, mas ninguém me responde. Em Juiz de Fora, nas Minas Gerais, um trem passa lento e, árvore-corpo, matraqueia, espojando:
— Po-e-ti-sa, po-e-ti-sa. Pooooo…e-ta-ta-ta-ta…!
“— Ó trem da treva/ Leva me leva”
Meus olhos são como dois bacorinhos
feridos de morte
Alucinado, recobro minha ferida sapiência e, a todo vão momento, tento a ti deslindar. No entanto cada verso teu, Alvim, é um corpo ferido de luz, marcado de sorte pela morte.
— Quem te escondeu, Maria Lúcia?
— “Corre os olhos num rasgo de Absoluto” — encapuchas-me.
Passei o dia engabelando meu corpo
de cá p’ra lá
de lá p’ra cá
Ensopei três sentimentos berrantes
gabolice
Chispa, chocalho
no frege das ferraduras
A metade de ti é maioria no mundo da poesia que antes encontrei. A terça parte da tua criação, Maria Lúcia Alvim, é meeira da “caçula dos arcanos”, bem assinalada de humano remate.
É tarde carícia
a gota de orvalho
susta na folha
o armistício
— Solta teu silêncio no umbral dos casarões silentes. Deixa tua voz, Lúcia lúcida, a tornear o pensamento incongruente, a revelar-nos, na estrofe que explode, a surpresa do singular momento.
Pleitear o Mistério me deixou desfigurada.
— Ninguém viu, tiziu.
Nobres aqueles que te leem. Vulgares aqueles que te desprezaram. Enquanto os modismos colhiam os aplausos sensaborões, os filhos de Araxá ouviam o teu rebelde pastoreio-lamento a ringir nas gavetas, juízo afora. Se houver vazio em tua prece poética, é porque os deuses só escutam quem se expressa como o (ad)vento.
Ninguém te ouviu, alva assim? Vamos bater pasto para, segundo Ricardo Domeneck, “morrermos menos miseráveis”.
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Não quero dominar a natureza.
Na colheita do arroz eu faço anos.
Fui mordida de cobra assim no limpo.
Dos poentes farei meus aliados.
Das tempestades minha camarilha.
Dá-se no ventre da noite, Maria Lúcia, o reverso inconfesso. A dama extrai o veneno da fúria das palavras e injeta beleza e inovação na natureza das melodias. Calma, aliada da multiplicidade estética e sempre alheia ao brado das cobras (mal)criadas.
Este soneto é em usufruto
das palavras que aqui vou perpetrar.
O fruto se retalha, dissoluto.
Palavras criam corpo no lugar.
Corre meus olhos na poesia inconsútil; e eu, Arcanjo, me ponho a cismar por entre a “Litania da lua e do pavão”. Por que não eu conheci antes esta dama-poetisa de Araxá?
Fonte: Batendo pasto, de Maria Lúcia Alvim. — 2ª ed. — Belo Horizonte, MG : Relicário, 2022.
*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.