PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCLXVIII)
Clauder Arcanjo*
(Nauro Machado)
Confidências a Nauro
Empregado de ofício servil
e a ser cumprido só por mim nas ruas
de uma cidade tão mesquinha e vil
na hemorragia com que, ó Ilha, menstruas
o ventre da mulher como um barril
cheio de larvas e sangue de luas (….)
(Nauro Machado, em O baldio som de Deus)
Encontro-me numa ilha; não do rio de Licânia, mas, sim, de uma baía distante. Nela, as montanhas, Nossa Senhora da Penha e o mar me espiam; e eu, em silêncio de nostalgia, encontro algumas palavras para expiar a hemorragia da minha saudade doída.
Ó pranto eterno, a subir pela costa
dos olhos para a cegueira do rosto!
Ó verbo efêmero, a sair da boca
humana como um milhão de lobas!
Ao fechar os olhos, Nauro, esforço-me para rever a felicidade que, até ontem, me acompanhava. No entanto as lembranças se enfiam na memória, que eu imaginava cega, e me trazem a luz do teu riso, Biscuí (“o eterno hoje /que já te foge /pelo horizonte”); e o verbo, trêmulo, se desfaz em lágrimas mil. Tento dormir, e a madrugada cai sobre mim, com um milhão de uivos.
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Licânia distante, Nauro, me ensinou que ser solitário é a minha sina. Isto me tornou amigo de mim mesmo, dos meus escritos, dos meus livros, assim como daqueles que se vestem com a garbosa solitude.
No som ruim que ao próprio inferno acorda
pelo sineiro de maldita corda,
a badalar teus dobres de assassina,
sei, desde cedo, teu sol condenado
pelo sombrio anoitecer transfigurado
na solidão que é a minha eterna sina.
Ao passar a vista sobre os sonetos teus, Nauro Machado, “o aziago canto de reis e de réus”, pressinto o badalar do sino da minha província, e o calor do sol que alumia e marca a lida de todos os nordestinos. Naquelas noites áridas, o lençol do silêncio, mendigado anoitecer, me ordenava:
— Um verso é brisa refrescante, se for em galope estradeiro. Mas, se for de pé-quebrado, é pior do que a maldição de uma insônia sem fim.
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Na escuridão desta noite de maio, como se as trevas imperassem desde o amanhecer do dia, eu principio um transe de agonia, Nauro, e embarco numa nau em que o rio é seco e as correntezas são de lágrimas vãs.
Ponho meu olhar tristonho no céu do próximo amanhã, porém as estrelas não permitem tal acinte e cobrem o horizonte com nuvens pesadas; e eu me enrosco, “o chão da cascavel no meu lençol, /envenenando o bem maior do mal”, a me abraçar com meu torso lívido.
Na solidão a trazer-me esse veneno
de uma cidade a ser do inferno apenas,
sei pelo verbo o sentido mais pleno
do desamor lhe atando às minhas penas.
Não, Nauro, insisto que ainda nos resta um último cálice de alegria, a se ofertar no banquete de Urano, “numa elegia com bênção e novenas”. Apesar da sina aziaga, persisto: a maldição de Deus em dor não nos fez.
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Conheço as ruas e os imundos becos,
escadarias, casas e sobrados
de onde se escuta por seus lábios secos
a multidão num cio em trêmulos brados.
Todas as coisas de Licânia, poeta, escuto dentro de mim: taperas, açudes, puteiros, labirintos, orvalhos, estradas, “a multidão faminta da orfandade”. Em especial, rezo todos os dias, eu desejo que tais bulícios em mim permaneçam, como se em cio de um vivente com a sua morada, evitando assim que me exile no desterro do nada.
Vive um poeta em mim que não é Pessoa,
que ninguém chama quando o sabe nau,
a naufragar no oceano ou na lagoa
onde só nada quem se sabe um náu-
frago. E a sonhar com uma terra boa
como uma bênção vinda no final, (…)
— Eu sou um dos Pessoas! — grito, sem rumo nem nau. Se sonho com uma terra boa, Poeta, essa Canaã hoje já não é rio a vau. “E como o mundo era feliz e igual!”
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— Canta, Poeta, salva este tempo e a vida!
O papel do poeta não é o de dizer
pela palavra o que lhe falta à vida,
mas transformar, dizendo o próprio ser,
a sua existência pela coisa lida, (…)
Escreverei, então, ao longo das horas desta noite cativa, dizendo e redizendo, in verbis, o que me define, “se sou este ser ou se de um outro venho”. Enfim, como a ousar transformar, em poesia-alegria, tanta ausência sentida e ouvida, “essa palavra ao Ser restituída”.
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Nenhuma flor concorre com a do ser,
nenhum soluço ganha dos cantares (…)
Apresento-te, Nauro, meu testamento literário: treze livros publicados, outros incompletos, sem mencionar a centena de páginas esquecidas nas gavetas da escrivaninha. Estas, em vergonha e orgulho se alternam, ao relê-las na companhia dos mestres Machados: do Nauro, do De Assis, do António. Penso, um dia, lavrar tal testamento nas ribeiras do rio Acaraú, “sabendo as águas sobre um mar sem porto”.
Obs.: os versos de Nauro Machado foram extraídos do livro O baldio som de Deus – Rio de Janeiro: Contra Capa, 2015.
*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.