PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCLXXI)
(Arte de Audifax Rios)
Confidências ao Acaraú
O rio começa
onde as águas não nascem
como a estrada se abre
pelos pés que consomem
o caminho e os espinhos.
O rio foi minha parteira, naquela noite de março em que eu e minha mãe estrebuchávamos; ele corria alto, anunciando a invernada. Como seria tempo farto o que ele prenunciava, cuidamos de ganhar o mundo, apesar de, da luta pela vida, sairmos escangalhados.
O rio, desde a infância, me lembrava da fartura e dos maus modos, de querer vir ao mundo como burro, pondo os pés na terra de qualquer jeito. Hoje, os espinhos da lida me consomem, porém nada se compara ao nascimento naquele leito-cama improvisado.
Em Licânia, cada filho nasce com seu rio, apesar de fingir, migrante, não ter mais suas águas a lhe cobrirem as marcas na caminhada.
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Assim, o rio cresce
de sua própria beira.
Mata, ou fonte bifronte
que fica à cabeceira
de sua margem-ribeira.
Pondo tanta lembrança no alforge — hoje, haja mala e muita mala —, tentava ouvir os remansos do Acaraú, a lamber as ribeiras nas cheias bravias. Os meninos a torcerem por mais água, os homens a temerem o rompimento do Araras nas cabeceiras, as mulheres a clamarem por Sant’Anna, padroeira de todos aqueles condenados. E o rio a roncar seu destino espumante, descendo no rumo do Atlântico, feito oceano em pleno sertão.
Cresce de seu corpo
de pedra, seixo, argila,
azul, como este céu
onde Vésper cintila.
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Cresce de suas ilhas
de bochechas d’água
onde o vento noturno
enche as plagas de mágoa.
Nas noites, o vento crescia por entre as palhas das carnaubeiras, a lamber as redes frias da meninada, crente na presença dos lobisomens, trazidos no bojo das cabeças d’água. Nós sonhávamos que, nas ilhas alagadas, as visagens faziam festa, escaramuçando por entre as grotas, arrancando as árvores pelo tronco e semeando o pavor nas várzeas mais brejadas. No dia seguinte, muita água debaixo das redes, o pânico gerou um córrego mijado.
— Valei-nos, Senhora Sant’Anna!
Cresce de suas pontas
soltas na paisagem;
cresce da mineral
raiz, de sua margem.
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E em seu ritmo igual
ao de um pêndulo oscilando
paralelo com o tempo
vai os dias contando.
O relógio de Licânia é de ponteiros de água, assentados em chão árido. Se o inverno não vem, o tempo seca as datas e ficamos diante do infinito. Ou da morte anunciada. Só o rio socorre os homens e os bichos, misturados, sem se saber quem é quem no desespero espichado.
No entanto, se a chuva cai, os ponteiros rodam ligeiros, marcando tudo com as estações em ritmo de chuvarada. Cada pingo, a semente da ilusão de que nunca mais aqui faltará invernada. O tempo, então, junta as horas de trovão e sereno, e o rio corre em seu leito-caixão, abismado.
O rio escorre lento
como se fosse empurrado,
pelo próprio lamento
de seu curso arrastado.
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Em sua substância
simples e variada,
o Acaraú é o rio
de água viva e parada.
Quando vejo o Acaraú de ponta a ponta, as canoas a riscarem suas águas, os búzios a festejarem os remansos, os matutos contentes com tanto despautério, celebro a virtude das nuvens bojudas, trazendo o sêmen da graça para as aluviões tão ressecadas. Quando encontro o Acaraú sedento, parado e areoso de margem a margem, sinto a dor do sertão, condenado à fúria da seca braba.
— Valei-nos, Senhora Sant’Anna! Não deixeis o rio virar sertão.
Conforme as ataduras
que lhe seguram os braços,
o rio em sua enchente
corta a terra em pedaços.
As águas do Rio das Garças, nas enchentes perfumadas, trombam contra as margens, como se touros com chifres d’água, rasgando o vazio das terras, esfarelando os tecidos de solos e raízes e levando tudo corrente abaixo.
E leva de roldão
os casebres e os ranchos
da plebe, que os constrói
de folhas e garranchos.
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— Valei-nos, Senhora Sant’Anna! Não deixeis o sertão virar mar.
E por solo arenoso
ou de aluvião,
vai furando e deixando
sua marca no chão.
Quando o aguaceiro serena e o rio se monta, assossegado, na montaria do seu seio caixão, a gente percebe que ele marcou o chão com seu ferro, e banhou as margens com o néctar da promissão. Resta ao homem lá enfiar a semente e, depois, colher para viver sem precisão.
O Acaraú é o rio
mais amigo do pobre,
no inverno ou na seca
em sua fome o socorre.
Rio Acaraú, que resiste e socorre, a lutar para nunca deixar sem filete d’água o meu chão.
Obs.: trechos em itálico extraídos do livro O Acaraú: Biografia do rio, de José Alcides Pinto (Fortaleza: Editora Henriqueta Galeno, 1979).
*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.