Pílulas para o Silêncio (Parte CCXCVIII)
Clauder Arcanjo*
(Pintura “Criança morta”, de Candido Portinari)
Para José Moreira Neto
(in memoriam)
O tempo tenta cremar a memória, mas sua chama fria não é capaz.
Numa noite funda, quando o silêncio pascal impera e as palavras são cegas, ouço a tua voz de amizade: “Como vais? Por onde andas?”
Eu me volto para o passado e lá te reencontro. A mesma seriedade, o apuro aos fatos, a preocupação constante com o próximo e com os teus.
Resolvo quebrar a palidez do instante que nos encerra, porém a voz me falta. Assombrado, corro ao teu encontro, e tu somes na bruma daquela hora.
“Como vais? Por onde andas?”
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Na manhã seguinte o teu riso contido permanece ao meu lado, junto à minha escrivaninha.
Resolvo não te assombrar com indagações e apenas deixo aquele momento ter o condão, batismo da eternidade.
Um pouco mais, o sino da igreja dobra um réquiem matutino, incomum naquela segunda-feira chuvosa.
Resolvo não perguntar por quem os sinos dobram, pois eles podem dobrar por ti.
— Pai nosso, que estais no Céu, santificada seja a recordação do teu nome. Amém!
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Um chamado rasga o véu da dúvida:
— Nosso amigo fez a sua passagem.
“Como? Por que, meu Deus?”
No entanto, os Céus não se importam com o primado da razão: têm seus códigos e sua filosofia próprios.
Saio de casa às pressas, corro para me encontrar contigo-corpo, apesar de já saber o teu espírito no firmamento.
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Na chegada, o esquife estendido no centro da capela. O padre a nos orientar na crença cristã, no sentimento de ressurreição, na confiança férrea na esperança.
No choro dos teus, envergonho-me de ter me distanciado de ti nos últimos anos.
— Ó Deus, por que os abandonastes?
Ao elevar a face constrangida, o sinal divino na fisionomia de um dos teus filhos: uma candura infantil e serena, como se a nos explicar: “Papai nasceu em Morada Nova e agora volta para a sua nova e eterna morada.”
Na saída, uma chuva fina de abril a abençoar aquela Páscoa singular.
“Vai com Deus, amigo José Moreira Neto!”
*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.