PÍLULAS PARA O SILÊNCIO – (PARTE CCXXII)
Cansaço sem valia
O que há em mim é sobretudo cansaço —
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.
(Álvaro de Campos)
Anoitecia, cansado. Dormia, quase extenuado. Levantava-se para o serviço, esgotado.
E, assim — a primar pela coerência de espírito —, Gaulício Tormenta apresentou-se ao batente, arrebentado.
Quando o supervisor do turno passou por ele, disse-lhe:
— A preguiça ainda te mata, Tormenta!
&&&
No mais das vezes cansamos de tudo. Dos discursos vazios, das utopias superadas, dos sonhos insípidos: nossos cansaços.
Ao revisitarmos tanto cansaço, concluímos, por nós mesmos, que o que nos extenua é o cansaço.
E, fadigados, entregamo-nos ao próprio cansaço.
&&&
Febrônio Quintana assoviava desprezo ao caminhar pelas ruas de Licânia. A troçar do ritmo da cidade, a menosprezar a sabedoria dos doutos da província, a diminuir a memória dos heróis do passado.
Os homens de negócio julgavam-no anarquista. Os acadêmicos, um reles desiludido. Os historiadores, um invejoso de origem reles.
Mas Febrônio nem ligava, tão somente sorria cada vez mais, desprezando-os.
— Ridículos!
&&&
Nonato Balcedo sentou-se na cadeira de balanço, mascou seu azedume de marido ciumento e esperou pela chegada de Marília. Quando a esposa abriu a porta, ele saudou-a:
— Esqueceu que tem casa, foi?
— Não, apenas me dei conta de que meu marido não presta. Antes tarde do que nunca, ensinou-me meu amigo Dirceu.
&&&
Capitão Corveta subiu na canoa e espiou a correnteza do rio. Sentiu-se um almirante, apesar de lhe faltar um navio digno e uma justa tripulação. Coçou os bagos, ajustou o boné do Armazém Sexta-feira e exaltou-se:
— Minha vida por uma batalha naval!
Nesse exato momento ouviu-se o espoucar de um foguetório nos rumos da Matriz. Corveta abandonou seu posto, meteu-se de mata adentro, apesar dos rogos do seu assistente Pancrácio:
— Volte aqui, patrão! São os fogos da alvorada, abertura das novenas de Senhora Sant’Anna.
&&&
Tomás Anchieta rezou, implorando aos céus que afastasse Diana dos seus sentidos:
— Pai, a fé me é rala, e a carne é fraca. Ah, meu Pai!
Nessa mesma noite Dalgisa viajou para a capital, não sem antes recomendar a Diana que não esquecesse o mingau do seu querido Anchietinha:
— Mingau de aveia, com um pouco de canela. É bom para recobrar as forças do bichinho. Leve ao quarto dele e insista, ele precisa se alimentar bem. E depois veja sempre se ele se cobre antes de dormir, tenho medo de vento encanado.
Dizem que, na madrugada, Deus fechou os olhos para o destino de Tomás Anchieta.
— Ah, meu Pai!
&&&
— Quem cansa sem valia não vale a desvalia — propagava Gorena Mandra, o mais preguiçoso dos filhos de Licânia.
*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.