PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCXXIV) – Clauder Arcanjo
Na janela de um dia lírico
Janela! Que é uma janela? Abrir de perspectivas na hora em que nos olhos chove cinza e anoitece.
(Xavier Placer, em O navegador solitário)
Na janela havia um ponto de esperança, cerzido pelo novelo de luz que perpassava a seda do desalento, estendido na varanda de singulares umbrais.
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Nos olhos de Helena, a perdição indecifrável. Nos braços de Helena, a odisseia de um amor homérico. No colo de Helena, o rito de êxtase e morte da paixão anunciada pelos deuses olímpicos.
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Nonato Balcedo não quis a ciência, a desrazão se lhe afeiçoara. E fugiu da condenação do tempo ao se autoproclamar Rei dos Nefelibatas. Para, somente então, sumir por entre as nuvens pesadas, prenúncio de que se fundira à estrela do nada, na longínqua constelação da vacuidade.
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Berilo Saduceu fora batizado na Matriz de Licânia, chorando sob o repique dos sinos, numa tarde de relâmpagos e trovões. Ao se crismar, o sol fulgia sobre a província, castigada há anos sem o bálsamo da invernada.
Para casar, Berilo exigira do padre Araquento que a cerimônia se desse após o refrigério de uma bendita e longa chuva. O pároco, depois de ouvir a confissão da noiva de Saduceu, propôs-lhe a renúncia ao matrimônio:
— Filha, cuide da sua vida!
— Mas, seu padre… por quê? — indagou a moça.
— Por quê? Ora, porque esse safado não vale nada! — vituperou o clérigo, sem se dar conta do ódio que animava o seu árido aconselhamento.
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Audácio Bento não era afeito a intimidades. Cedo apartara-se de casa e dos seus para ganhar o mundo. Trabalhou, lutou e venceu, sozinho.
Hoje, homem de posses, Audácio marcou uma festa grandiosa para ostentar seus bens à vizinhança. No entanto, viu-se só, cercado de ninguém. Seus convidados também não eram “afeitos a intimidades”.
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Javier Cerpla trouxe da Galícia, quando migrou para o Brasil, um espelho na bagagem, lembrança de família.
Hoje, ao entrar em casa, depois de um dia saudoso, Javier percebeu que o espelho estava partido. Aproximou-se da moldura e concluiu, emocionado:
— Meu desterro é sem fim!
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Nada consola aquele que perde, por descuido, o motivo para sonhar. Quer isto seja o amor, a chegada em local imaginado, a construção de uma moradia, ou o mero motivo para flanar. Pouco importa se no rumo de Meca, de Roma ou de qualquer outro lugar.
*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.