PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCXXVIII) – Clauder Arcanjo
Registros de uma memória provinciana
Depois de tudo
Mas tudo passou tão depressa
Não consigo dormir agora
Nunca o silêncio gritou tanto
Nas ruas da minha memória
Como agarrar líquido o tempo
Que pelos vãos dos dedos flui?
Meu coração é hoje um pássaro
Pousando na árvore que eu fui.
(Cassiano Ricardo, em “Ilustre poeta”)
A velha Dalmira Generosa, com seu rosário sebento, rezava com os lábios para a família empobrecida, enquanto os olhos dançavam no visgo do ódio pela riqueza dos vizinhos.
Certa manhã, ao sair para a missa das seis, deu com o carro novo do seu Aristides Pétreo estacionado na rua.
— Meu Deus, Tu continuas a premiar os ímpios e indignos! — reclamou baixinho aos Céus, não sem antes arranhar, com a cruz metálica do rosário, a pintura do capô reluzente.
De volta da Santa Missa, a velha Dalmira presenciou o lamento desesperado do vizinho diante do arranhão no seu automóvel.
— Deus lhe dará mais e em dobro, seu Aristides. São grandes e dadivosas as ações divinas — consolou-o.
— Amém. Obrigado pelas santas palavras, dona Generosa. Que Deus a cubra sempre com a Sua bênção e que lhe mantenha protegida da sanha dos invejosos!
— Amém — agradeceu-o, entrando em casa com a alma refeita e aliviada.
&&&
Malnova passou o último ano refém da memória. Se acordava cedo, imaginava-se sob o canto dos sanhaços, apesar de morar tão longe dos pássaros. À tarde, mourejando uma solidão aflita, sonhava-se jovem em meio aos amigos da província distante. Quando noite, preso aos fantasmas do abandono da velhice, ele rebelava-se, cantarolando a valsa dos festejos de quinze anos da irmã há décadas falecida.
&&&
Perpétuo Laca, cansado de traduzir os livros dos mestres, resolveu conceber a sua própria obra.
De início, pensou, cairia bem um livro de contos. E, quando a primeira história surgiu, era uma mistura fiel, e tosca, dos enredos de Maupassant, Borges, Torga e Tchekhov. Laca renegou-a, rasgando-a em fúria.
Passados alguns dias, Laca arvorou-se poeta. Ao clamar pela aproximação da musa, um poema concretizou-se. Depressa pôs-se a lê-lo e relê-lo; decepcionado, identificou, em cada estrofe, um cadinho de Bilac, outro tanto de Drummond, uma rima de Dante… Num assomo de ira, jogou-o na lata do lixo.
Hoje, transcorridos vários meses, Perpétuo Laca aquietou-se na cadeira de mero tradutor, definitivamente satisfeito com o mister de apresentar as coisas alheias.
&&&
Nobilino Pantera sempre fora miúdo e tímido como quê.
Na infância, ao ler de carreirinha antes dos demais na alfabetização, envergonhou-se com o rasgado elogio que lhe fizera a mestra Regina.
No ginásio, ao desvendar todos os mistérios da álgebra, o professor Pastílio Proença pespegou-lhe um “dez com louvor” na prova final. Além de nomeá-lo, perante a classe reunida, como um promissor matemático licaniense. Foi o bastante para o seu rosto inundar-se de um tom rubro, e as pernas quase lhe faltarem.
Hoje, funcionário público há anos, Nobilino faz suas tarefas pisando no freio e segurando-se para não consertar os erros do chefe da repartição. Pantera cansou-se de ser perseguido, e seguidas vezes admoestado, por sua “abjeta e intrometida sapiência”.
&&&
Que Deus te conceda a milésima parte do que tu rogas para que Ele não me outorgue. Assim, seremos ambos benditos e felizes.
*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.